Sexualidade
Homossexualidade pode ser influenciada pela epigenética
Pesquisa afirma que a
orientação sexual pode estar ligada a marcadores epigenéticos que
regulam a sensibilidade à testosterona e são transmitidos de pais para
filhas e de mães para filhos
Ricardo Carvalho
Estudo tenta entender qual o componente biológico na definição da orientação sexual das pessoas
(iStockphotoItem
)
Do ponto de vista evolutivo, o fato de a homossexualidade ser algo
bastante comum na sociedade humana, ocorrendo em cerca de 5% da
população mundial, é intrigante. Como homossexuais produzem menos prole
do que heterossexuais, uma possível variação genética relacionada à
homossexualidade dificilmente seria mantida ao longo das gerações. "Isso
é muito enigmático a partir de uma perspectiva evolucionária: como a
homossexualidade pode existir em uma frequência tão alta a despeito do
processo de seleção natural?", diz em entrevista ao site de VEJA Urban
Friberg, do departamento de Biologia Evolutiva da Universidade de
Uppsala, na Suécia. Friberg, ao lado de William Rice, da Universidade da
Califórnia em Santa Bárbara, e Sergey Gavrilets, da Universidade do
Tennessee, ambas nos Estados Unidos, pode ter encontrado uma resposta: o
fator biológico ligado à homossexualidade não estaria na genética
propriamente dita, e sim em um conceito conhecido por epigenética. Os
resultados foram publicados nesta terça-feira no periódico científico The Quarterly Review of Biology.
A epigenética trata de modificações no DNA que sinalizam aos genes se
eles devem se expressar ou não. Esses marcadores não chegam a alterar
nossa genética, mas deixam uma marca permanente ao ditar o destino do
gene: se um gene não se expressa, é como se ele não existisse.
CONHEÇA A PESQUISA
Título original: Homosexuality as a Consequence of Epigenetically Canalized Sexual Development.
Onde foi divulgada: The Quarterly Review of Biology
Quem fez: William Rice, Urban Friberg e Sergey Gavrilets
Instituição: Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, Universidade de Uppsala e Universidade do Tennessee.
Resultado: O artigo estudou um possível componente hereditário
para, a partir de um ponto de vista evolutivo, explicar a
homossexualidade. Os três autores montaram um modelo segundo o qual uma
marca epigenética (epimarca), que regula a sensibilidade à testosterona
em fetos, pode ser transmitida de mãe para filho e de pai para filha e
influenciar na orientação sexual.
Essa nova teoria vai ao encontro de outra tese mais antiga, a de que a
homossexualidade é definida, ao menos em parte, por um componente
hereditário. Pelo menos quatro grandes estudos, publicados em 2000, 2010
e 2011, nos periódicos Behavior Genetics, Archives of Sexual Behavior e PLoS ONE,
apontam para esse fator na origem da orientação sexual, a partir de
estudos com gêmeos monozigóticos (também chamados de idênticos ou
univitelinos, produtos da fertilização de um único óvulo) e dizigóticos
(também chamados de fraternos ou bivitelinos, produtos da fertilização
de dois óvulos diferentes).
Epigenética — Imagine o material genético humano como
um manual de instruções. Os genes formariam o conteúdo do livro,
enquanto as epimarcas ditariam como esse texto deveria ser lido. "A
epigenética altera e regula a forma como os genes se expressam", explica
a geneticista Mayana Zatz, do departamento de Genética e Biologia
Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP). É por meio dos comandos
epigenéticos, por exemplo, que o pâncreas fabrica apenas insulina,
apesar de as células nesse órgão terem genes para a produção de muitos
outros hormônios.
Acreditava-se que os traços da epigenética não eram hereditários, sendo
apagados e recriados a cada passagem de geração. Como pesquisas nas
últimas décadas mostraram que uma fração de epimarcas é, sim, passada de
pais para filhos, Friberg, Rice e Gavrilets julgaram ter encontrado a
peça que faltava para montar o quebra-cabeça.
Sensibilidade – Os três criaram um modelo segundo o
qual uma dessas epimarcas transmitidas hereditariamente é o marcador
responsável por regular a sensibilidade à testosterona de fetos no útero
materno. Ao longo da gestação, tanto fetos masculinos quanto femininos
são expostos a quantidades variadas do hormônio, sendo que o fator
epigenético estudado no artigo torna o cérebro dos meninos mais
sensíveis à testosterona quando os níveis estão abaixo do normal. Isso
acontece para preservar características masculinas, podendo inclusive
influir na orientação sexual. O mesmo ocorre, mas inversamente, com as
meninas. Quando a testosterona está acima do normal, a epimarca funciona
como uma barreira, diminuindo sua sensibilidade ao hormônio.
A partir desse modelo, a homossexualidade poderia ser explicada pela
transmissão de epimarcas sexualmente antagônicas. Ou seja: quando o pai
transmite seus marcadores, que tiveram a função de torná-lo mais
sensível à testosterona, para uma filha. De igual maneira, esse material
hereditário pode ser passado de uma mãe para um filho, tornando-o menos
sensível à testosterona.
"Quando os efeitos desse mecanismos (que regulam a sensibilidade à
testosterona) não são apagados entre as gerações, eles se expressam na
prole do sexo oposto. Isso pode resultar em indivíduos que desenvolvem
preferências sexuais pelo mesmo sexo", explica Friberg, da Universidade
de Uppsala. "O que fizemos foi colocar pela primeira vez o conceito da
transmissibilidade epigenética no contexto de desenvolvimento sexual."
O pesquisador faz questão de ressaltar que ainda não se pode provar que
a epimarca específica da sensibilidade à testosterona é hereditária.
Para tanto, testes específicos precisarão ser realizados. "Uma grande
solidez do nosso estudo é que o modelo epigenético para a
homossexualidade faz predições que são testáveis com tecnologia já
existente. Se o nosso modelo estiver errado, pode ser rapidamente
descartado", escrevem os autores no artigo do The Quarterly Review of Biology.
Outro pesquisador envolvido, Sergey Gavrilets, da Universidade do
Tennessee, afirma que mesmo que a teoria da hereditariedade seja
respaldada por futuros estudos, o debate está longe de acabar. "A
hereditariedade explica apenas parte da variação na preferência sexual.
As razões, que podem ser sociais, culturais e do ambiente, permanecerão
como um tópico de intensa discussão."
"Estudo positivo" – Carmita Abdo é coordenadora do
Programa de Estudos em Sexualidade da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo. Ela destaca que a nova pesquisa é positiva,
uma vez que contribui para a melhor compreensão dos fatores biológicos
envolvidos na ocorrência da homossexualidade. "O trabalho é importante
porque reforça uma ideia cada vez mais prevalente: a de que a genética —
no caso a epigenética — tem influência sobre a orientação sexual."
Essa compreensão científica tem sido importante, segundo Carmita, no
combate a mitos que envolveram o tema e que alimentaram interpretações
preconceituosas. "Até pouco tempo atrás, achava-se que a orientação
sexual era proveniente de uma escolha, como se deliberadamente o
indivíduo optasse por ser homossexual. Muito do preconceito contra os
homossexuais advém daí", afirma, lembrando que até o início dos anos 90 a
homossexualidade era tratada como um transtorno de preferência, e não
como uma característica. "Observar um fenômeno pelas lentes da ciência
muda a compreensão e ajuda a deixar de lado certas discriminações. Nesse
caso em particular, você remove da equação a ideia de que o homossexual
é responsável por uma opção que muitos veem como negativa, pejorativa."
Ela ressalva, entretanto, que ainda existe muita incerteza no campo e
que a orientação sexual precisa ser encarada como produto de vários
fatores. "O estudo reforça a ideia segundo a qual existe uma
predisposição que vai ser confirmada ou não a partir de uma serie de
influências que vão ocorrer ao longo da vida, algumas delas de ordem
cultural, educacional e social. Ele não consagra uma interpretação
determinista, nem diz que tudo depende dos genes"
"Nosso objetivo é entender como as preferências sexuais se desenvolvem e evoluem"
Urban Friberg
Professor do Departamento de Biologia Evolutiva da Universidade de Uppsala, na Suécia
Qual o principal objetivo da pesquisa?
Assume-se que indivíduos homossexuais produzem menos prole do que
heterossexuais. Qualquer codificação genética para homossexuais deveria,
portanto, ser rapidamente removida no processo de seleção natural.
Apesar disso, a homossexualidade é relativamente comum entre humanos
(cerca de 5%). Além do mais, os melhores estudos disponíveis mostram que
há um componente hereditário na homossexualidade. Isso tudo é muito
intrigante de uma perspectiva evolucionária: como a homossexualidade
pode existir em frequências tão significativas apesar da seleção contra
ela? O objetivo da nossa pesquisa foi simplesmente tentar resolver esse
enigma, o que nos ajuda a entender como as preferências sexuais se
desenvolvem e evoluem.
Como a mudança de foco de genética para a epigenética pode ser explicada?
Nossa principal contribuição é trazer uma explicação lógica para o
porquê de a homossexualidade ser algo tão frequente – e para tanto nós
mudamos o foco, como causa da homossexualidade, de genes para
epimarcas. Nossa teoria sugere que a homossexualidade é resultado de um
mecanismo que ajuda as pessoas a desenvolver a preferência por
indivíduos do sexo oposto. Quando os efeitos desses mecanismos
(epimarcas) não são apagados entre as gerações, eles se expressam na
prole do sexo oposto. Isso pode resultar em indivíduos que desenvolvem
preferências sexuais pelo mesmo sexo.
Como a comunidade científica lida com genética e homossexualidade?
Houve diversos estudos nos quais os pesquisadores tentaram encontrar
genes associados com a homossexualidade. Tais estudos falharam e nenhum
gene foi identificado. O resultado disso tudo é intrigante, uma vez que a
homossexualidade tem um componente hereditário. Nossa teoria, porém, é
capaz de explicar por que a homossexualidade é tão comum e tem um
componente hereditário, sem nenhuma codificação genética para esse
traço.
Encontrar uma possível explicação biológica ajuda a combater o preconceito?
Atualmente, algumas pessoas acreditam que a homossexualidade é uma
escolha pessoal e que indivíduos homossexuais podem ser ensinados a
escolher de forma diferente a sua orientação sexual. Eu acredito que
encontrar as raízes da preferência sexual mina tais mitos e ajuda as
pessoas a melhor entender e aceitar a homossexualidade.
FONTE: Revista Veja/Ciência