Biologia
Complicações no parto, hérnias de disco, dentes do siso, dores nas costas e nos pés. A mesma seleção natural que permitiu à espécie humana sobreviver por milênios também é responsável por boa parte do sofrimento que a acompanhou durante todo esse tempo
Guilherme Rosa
A evolução produz função e não perfeição. Ao andar sobre
os dois pés, o ser humano ganhou mobilidade, mas também uma série dores
na coluna
(Thinkstock)
O ser humano não é um projeto acabado. Ele é produto de milhões de anos
de seleção natural: uma sucessão de mudanças genéticas aleatórias que
ajudaram na sobrevivência do indivíduo e se acumulam no DNA da espécie.
As mudanças são lentas e nem sempre levam em conta o bem-estar do
indivíduo. A prova disso está no próprio corpo do Homo sapiens —
mais precisamente, nas falhas desse corpo. A dor de dente, a hérnia de
disco, o joanete e o complicado parto humano são algumas das mostras de
que o homem surgiu a partir de uma enorme sucessão de tentativas e erros
— e não foi feito para durar muito. "Desde Darwin sabemos que não somos
perfeitos. A evolução produz função e não perfeição. Para a espécie se
desenvolver, basta que o organismo sobreviva o suficiente para passar
seus genes adiante", afirma Jeremy de Silva, antropólogo da Universidade
de Boston, nos Estados Unidos, que apresentou uma palestra sobre o tema
no Encontro Anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência,
realizado entre os dias 14 e 18 de fevereiro em Boston, nos Estados
Unidos.
As falhas de projeto começam na própria fundação do corpo humano: o
esqueleto. As espécies das quais o homem descende andavam sobre as
quatro patas. Quando os ancestrais humanos passaram a se locomover sobre
os dois pés, adquiriram imensa agilidade e ganharam uma liberdade
inédita para suas mãos. Mas, para isso, sua coluna vertebral teve de
passar por um rearranjo radical. "A coluna de nossos ancestrais se
organizava na horizontal. Quando ficamos bípedes, tivemos de empilhar
todos os ossos que estavam nessa coluna, e ainda colocamos a cabeça no
topo. Fazer com que esse novo arranjo seja capaz de equilibrar todo o
peso do corpo é pedir para ter problemas", diz Bruce Latimer,
antropólogo na Universidade Case Western Reserve, nos Estados Unidos,
que também participou da palestra.
A dor na região lombar, por exemplo, está entre as mais comuns da
espécie humana — 80% dos adultos vão senti-la em algum momento da vida
—, e é causada diretamente por essa postura bípede. Segundo o
antropólogo, a coluna humana adquiriu uma série de curvas para
equilibrar todo esse peso, resultando em um formato de S. Isso faz com
que alguns pontos acabem sofrendo mais pressão que outros, podendo levar
à lordose, cifose e escoliose, transtornos que acontecem,
respectivamente, quando a coluna vertebral se curva demais para dentro,
fora ou para os lados, podendo provocar dor de forma crônica.
Ao contrário dos outros primatas, a coluna humana possui uma série de curvas para equilibrar o corpo bípede
A espinha pode ser danificada pelo próprio modo como os seres humanos
se locomovem: colocando um pé para frente de cada vez e mexendo as mãos
de forma inversa, para manter o equilíbrio. "Ao fazer isso, torcemos a
coluna milhões de vezes ao longo da vida”, diz Bruce Latimer. A torção
constante pode levar ao deslocamento de um dos discos cartilaginosos que
formam a coluna. Se esse deslocamento pressionar um dos nervos locais, a
dor pode se tornar insuportável — é a hérnia de disco. Segundo o
antropólogo, nenhum desses problemas é comum entre os outros primatas,
que ainda mantêm a locomoção sobre as quatro patas. Essas dores são
parte da condição humana.
Sofrimento antigo — Segundo os pesquisadores, se um
engenheiro tivesse de desenvolver o corpo humano, o resultado seria
totalmente diferente do atual. Um exemplo disso é o formato de seu pé.
"O pé do atleta paralímpico Oscar Pistorius é um exemplo de um órgão bem
projetado: feito de uma simples lâmina, desenhado para suportar o peso e
perfeito para o movimento", diz Jeremy de Silva.
O pé humano, ao contrário, não surgiu de uma prancheta, mas é o produto
modificado de seus ancestrais primatas. Ele é uma estrutura móvel,
formada por 26 peças — os ossos — presas em seus lugares pelos
ligamentos e músculos. "É o equivalente evolutivo a clipes de papel e
fita adesiva", diz de Silva. Se o pé se mantém assim até hoje, é porque
cumpre sua função, sustentando todo o peso do corpo e permitindo enorme
mobilidade. No entanto, as consequências disso são entorses no
tornozelo, inflamações nas plantas dos pés, pés chatos e joanetes".
Nenhum desses problemas, das dores nas costas às dos pés, é causado
apenas pelo estilo de vida moderno. Mesmo que o sedentarismo e o uso de
calçados possa piorar grande parte dessas condições, nenhuma é causada
unicamente por isso. Diversos fósseis antigos apresentam indícios de que
o corpo humano sempre possuiu uma série de defeitos intrínsecos. "Lucy,
o famoso fóssil de um Australopithecus afarensis que viveu há mais de três milhões de anos, já apresentava sinais de problemas na coluna", diz Bruce Latimer.
Pode parecer estranho o fato de esses defeitos serem tão antigos e,
mesmo assim, não terem sido eliminados durante a evolução da espécie
humana. Mas a maioria desses problemas só aparece tardiamente na vida do
indivíduo, perto dos 50 anos, passada sua idade reprodutiva. A partir
do momento em que ele já transmitiu seus genes para a geração seguinte, a
seleção natural deixa o indivíduo por sua conta e risco. Hoje em dia,
com a humanidade vivendo cada vez mais, essas falhas ganham mais
destaque.
Parteiras ancestrais — Os pesquisadores destacam, no
entanto, que nem todas as marcas da evolução aparecem depois da idade
reprodutiva. O próprio parto humano é extremamente perigoso, mais do que
o dos outros primatas. "O jeito complicado pelo qual temos bebês mostra
como não existiu nenhum designer projetando nosso sistema reprodutivo",
diz Karen Rosenberg, antropóloga da Universidade de Delaware,
organizadora da palestra.
Segundo os antropólogos, há cerca de dois milhões de anos a evolução
tem selecionado cérebros — e crânios — cada vez maiores nos ancestrais
humanos. Hoje, seu cérebro chega a ser três vezes maior do que era no
começo desse processo. O problema é que isso vale não só para os
adultos, mas também para os bebês. Quando nasce, uma criança humana tem,
em relação ao corpo da mãe, a cabeça e o tronco duas vezes maior do que
o dos outros primatas. "Além disso, o canal de nascimento não é uma
passagem simples, mas muda de formato ao longo do percurso. O bebê tem
de passar por passagens muito apertadas, girando para encontrar seu
caminho", diz Karen.
Isso traz uma série de perigos no momento do parto, tanto para a mãe
quanto para a criança, incluindo danos neurológicos permanentes e até a
morte. No entanto, a evolução também equipou o ser humano para lidar com
esse risco. "Isso poderia ser uma ameaça à sobrevivência da espécie
humana, mas somos animais culturais. Assim, conseguimos a ajuda de
outras pessoas para diminuir o risco envolvido no momento do parto",
afirma Karen.
Essa ajuda é clara nos tempos modernos, com a existência dos médicos
obstetras e das cesarianas (que, segundo Karen, salvam vidas, mas estão
sendo usadas em excesso em diversas partes do mundo). Esse tipo de
apoio, entretanto, não é novidade – é anterior à própria medicina.
"Basta a presença de alguém para ajudar a receber o bebê, auxiliar a
mulher a respirar, a segurar a criança no momento do parto. Isso não
exige tecnologia. Minha teoria é a de que esse tipo de ajuda existe
desde os Australopithecus, há mais de três milhões de anos."
Projeto sem fim — A evolução não deixou apenas cicatrizes na espécie humana, mas também feridas abertas. Os Homo sapiens
atuais não são apenas produto da seleção natural, mas seus agentes
diretos — ela ainda está acontecendo em seus corpos. O exemplo mais
claro disso é a presença — e a ausência — dos dentes do siso.
Os ancestrais humanos possuíam grandes maxilares, com espaço suficiente
para o desenvolvimento completo dos dentes posteriores, como os molares
e pré-molares. Com o aumento progressivo do cérebro ao longo dos
milênios, o crânio humano começou a se organizar de modo diferente. O
espaço destinado para a caixa craniana cresceu, às custas das partes
inferiores da cabeça. Com isso, o maxilar não era mais capaz de suportar
os antigos 32 dentes. Muitas vezes, o terceiro molar, o último dente a
nascer, não conseguia mais se desenvolver por completo. Em alguns casos,
ele crescia na direção horizontal, pressionando o resto da arcada
dentária ou danificando o tecido mole da boca.
FONTE: Revista Veja/Ciência
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