Suporte e córtex
O mais habitual é que os bifaces sejam fabricados sobre seixos
rolados ou nódulos, mas muitos deles também tiveram como suporte uma
grande lasca. Os bifaces sobre lasca
aparecem desde o princípio do Acheulense e vão-se generalizando com o
tempo. Nesse caso, o feitio é mais simples, mais superficial, não se tem
de modificar tanto o suporte, pois as lascas, com frequência, têm uma
forma adequada, permitem um maior rendimento e uns poucos lascamentos
permitem ter a ferramenta acabada, até mesmo é mais fácil obter arestas
retilíneas. Ao analisar um biface sobre lasca se tem de considerar a
possibilidade de esta ter sido predeterminada (Levallois ou similar); em todo caso, é preciso indicar as características que tem: tipo de lasca, talão, direção de percussão.[21]
Córtex: é chamado de "córtex" ou, simplesmente, "zona cortical", a superfície natural do suporte lítico (seixo, pequeno bloco, nódulo, grande lasca ou laje de pedra), que, devido à erosão e às alterações físico-químicas, ou seja, a meteorização, fazem que este "córtex" exterior do seixo tenha cor e textura diferente do miolo. Também recebe o nome de "reserva".
No caso do chert, o quartzo ou o quartzito, a alteração é basicamente mecânica e, à parte da cor e o rodamento, mantém as mesmas características (dureza, tenacidade...). Contudo, o sílex está rodeado de um córtex calcário, mole e sem proveito para o talhe lítico.
No caso dos bifaces, ao serem "utensílios nucleares" , convém indicar a
quantidade e localização do "córtex" para compreender melhor o tipo de
feitio, ou trabalho realizado. O córtex da peça não deve ser tomado como
critério evolutivo ou cronológico.
Pátina: é geralmente chamada de "pátina" a alteração
superficial posterior ao trabalho humano na peça, que pode indicar o
meio no qual o objeto foi abandonado, e inclusive as reutilizações que
este pôde ter.
Muitos bifaces parcialmente talhados não são necessariamente
arcaicos, simplesmente não precisavam mais trabalho, são "bifaces de
economia". Pelo contrário, quando um suporte é pouco adequado, precisa
um feitio mais prolongado. Há bifaces cujo suporte é irreconhecível
devido ao profundo talhe que sofreu a peça, que elimina qualquer
vestígio original do mesmo.
Os seguintes apartados podem ser diferenciados neste campo :
- Monofaces : (às vezes, também chamados "unifaces ") talhados apenas por uma das suas caras e o córtex ocupa totalmente a oposta. O talhe monofacial não impede classificar este tipo de peças como bifaces; por outro lado, este não é nenhum rasgo de arcaísmo, pelo qual a presença de monofaces não é um indicador cronológico.
- Bifaces parciais : o córtex afeta à base e à parte central. A zona em bruto que, evidentemente, não é cortante, atinge até 2/3 partes do comprimento da peça.
- Bifaces de base reservada: Apenas têm a base reservada, que não é cortante, mas o córtex não supera um terço do comprimento máximo. Em alguns casos, um córtex lateral pode ser acrescentada ao córtex basal, afetando a uma das arestas, que seria, pois, roma: é o denominado "dorso natural". Já no século XIX, Gabriel de Mortillet pôs a ênfase na presença de dorsos corticais ou basais que deixam uma zona não cortante no perímetro da peça: "Até mesmo algumas das peças melhor trabalhadas, uma pequena área deixada sem talhe é apreciada habitualmente, umas vezes na base, mais com frequência num lateral. Poderia ser acreditado como descuido ou defeito. Mas o mais frequente, e portanto o mais plausível, é pensar que se trata de algo intencional. Há um bom número de bifaces com a base em bruto, sem talhar ou parcialmente desbastada... são peças nas quais uma zona de agarramento, denominada "talão" foi deixada adrede. Este talão serve de agarramento, pois, é uma zona de fácil preensão"[22] (esta ideia não é rejeitada, mas não pôde ser provada nem generalizada).
- Bifaces com córtex residual na aresta: São bifaces com todo o perímetro cortante, exceto algum pequeno dorso parcial ou zona cortical (deixando um pequena zona sem fio). Esse pequeno dorso pode ser basal, lateral ou oblíquo. Em qualquer caso, este dorso deve ser pequeno, deixando a cada lado arestas cortantes.
- Bifaces com todo o perímetro cortante: Neste caso todo o perímetro do biface está talhado e possui um fio cortante, o que não impede que fiquem zonas residuais de casca em alguma das caras, sem estas afetarem à efetividade das arestas.
[editar] A elaboração
A elaboração
é a própria manufatura. O mais normal é que esta seja a fase mais
importante na fabricação de um biface, embora nem sempre ocorra assim,
como no caso dos bifaces sobre lasca ou sobre um seixo adequado. Para
estudar a elaboração de um biface, é preciso identificar o tipo de percutores[6]:
que intervieram nela. Se há vários tipos de percutor, é imprescindível
indicar a ordem e o resultado de cada um. Evidentemente, haverá casos
que não seja possível apreciar o tipo de percutor, mas as opções mais
habituais são
- Os bifaces talhados exclusivamente com percutor duro[23], sem posterior retificação de arestas. A utilização de um percutor de pedra é o mais habitual na elaboração de um biface acheulense; o resultado é, a maioria das vezes, muito característico pois proporciona peças grossas e com beiras irregulares, devido a que os negativos dos lascamentos têm um contra-concoide muito pronunciado. Os lascamentos são escassos, largos e curtos (muito profundos), que tiram, no talão, grandes pedaços de aresta: a concavidade tão acentuada dos lascamentos provoca arestas sinuosas. A seção é irregular, com frequência sub-losângica; a intersecção entre as duas caras da peça gera um ângulo aberto, por volta de 60° a 90°. Dado que, nestes bifaces, as irregularidades do talhe não são retificadas, o seu aspecto é similar ao dos núcleos, de fato, as lascas obtidas eram aproveitadas na sequência produtiva. É comum que este tipo de feitio proporcione "bifaces parciais" (ou seja, com o talhe incompleto, deixando amplas zonas da superfície original do suporte), "monofaces" (bifaces talhados por uma única cara), "bifaces em estilo Abbevillense" e "bifaces nucleiformes". Geralmente, este tipo de feitio pode ser um sintoma de arcaísmo se o conjunto lítico vai acompanhado por dados arqueológicos contextuais que permitam datar a indústria.
- Os bifaces talhados com percutor duro e arestas retificadas também com percutor duro têm um aspecto mais equilibrado, pois a retificação consiste numa segunda (ou terceira) série de lascamentos, também com percutor duro, que regulariza as imperfeições e proporciona maior acabamento. A retificação é, com frequência, chamada também de "retalhe"[24] e, umas vezes é realizado por meio de lascamentos invasores e, outras vezes, são golpes menores, marginais, aplicados apenas nas sinuosidades mais marcadas, e, com frequência, refletidos, deixando marcas escadeadas. A retificação de arestas com percutor duro dá-se desde o princípio do Acheulense, e persiste até mesmo o Musteriense, pelo qual também não pode ser tomado como indicador cronológico (para poder considerá-lo como uma sinal evolutiva, deve ir acompanhado de outros dados arqueológicos complementares e independentes). Em qualquer caso, os bifaces resultantes costumam ter uma silhueta menos pesada, mais "clássica", de "forma amendoada" ou "oval", tendente à simetria e com menor proporção de casca (ou seja, da superfície original do suporte). Assim como ocorre nos casos que se citam a seguir, o retalhe nem sempre tem como objetivo atenuar a sinuosidade das arestas e eliminar irregularidades; de fato, é possível comprovar que em certos casos o retalhe tem como finalidade reavivar um gume boto pelo uso ou uma ponta deteriorada[25].
- Os bifaces desbastados com percutor duro, até conseguir uma preforma e terminados com percutor mole: são aqueles nos quais é plausível diferenciar lascamentos largos e curtos, com profundos contra-concoides (vestígios da primeira fase da elaboração, o desbaste), e depois foram afinados com percutor mole (de chifre ou de madeira dura), deixando cicatrizes mais suaves, com um contra-concoide quase invisível, com marcas menos profundas, mas mais dilatadas, invasoras e, às vezes, com pequenas e abundantes ondas de fratura. Resulta complicado distinguir os lascamentos realizados com um e com outro percutor, pois o percutor duro, se é pequeno e se aplica adequadamente, pode deparar marcas muito similares, confusas. Os bifaces assim obtidos costumam ser equilibrados, simétricos e, às vezes, até mesmo relativamente aplanados. De qualquer modo, o talhe com percutor mole aparece no acheulense pleno, pelo qual é, quando menos, uma orientação post quem, mas não permite maiores precisões. A maior vantagem a respeito do percutor duro é o permitir extrair lascas mais invasoras, mas também mais finas e com um talão pouco desenvolvido, o que permite manter, ou até mesmo melhorar, a eficácia do gume, com um mínima despesa de matéria prima. O inconveniente é que é muito exigente com a matéria prima, requirindo rochas de melhor qualidade. Contudo, ainda não existem estudos que permitam contrastar se o retalhe com percutor mole incrementa o rendimento da matéria prima por kg, também não há dados sobre a diferença em despesa de energia num ou outro percutor, embora haja quem considere que o percutor mole requer mais esforço, uma maior curva de aprendizagem, mas, em contrapartida, oferece mais lascas com uma menor despesa em matéria prima[18].
- Os bifaces talhados e retificados exclusivamente com percutor mole[23] são muito mais raros. De fato, é mais que possível que também tenham sido inicialmente desbastados com percutor duro, mas o lascamento, regular e invasor do percutor mole apagou tudo vestígio do mesmo. O percutor mole não pode atacar diretamente qualquer plataforma de percussão e não é totalmente adequado para certas matérias primas, ambas devem ser acessíveis a esta técnica; por isso é preciso, quer um talhe prévio com percutor duro, quer começar com uma lasca como suporte, pois o seu gume é frágil (também servem seixos muito aplanados e plaquetas). Ou seja, que, embora a elaboração de um biface se tenha feito com percutor mole, é plausível supor que também haja uma fase de desbaste para preparar uma "preforma", e uma ou várias fases de retificação, para terminar a peça; o que não está clara é a separação de ambas as fases (talvez todo o trabalho fosse realizado num só ciclo operativo). A elaboração com percutor mole permite um maior controle sobre o talhe, e, além disso, gasta menos matéria prima, de modo que se obtêm gumes mais longos, mais agudos, mais uniformes, e alonga a vida útil da peça. Os bifaces talhados totalmente com percutor mole costumam ser extremamente harmoniosos, simétricos e planos, com arestas muito retilíneas ou torsas e com negativos de lascamentos muito sutis, cujos contra-concoides são difusos, alongados, com ondulações palpáveis e nervos tão suaves que é difícil distinguir onde começa um lascamento e onde termina outro. A seção é geralmente regular e biconvexa, a intersecção das caras forma um gume com um ângulo agudo, com frequência em torno dos 30°. São peças de grande mestria, pelo qual é normal que sejam esteticamente atrativas. Portanto, costumam ser associadas a indústrias evoluídas, como as últimas fases do Acheulense (e.g.: o Micoquense) ou o Musteriense. Contudo, se tem de ser precavido, pois a elaboração com percutor mole não pode datar por si mesma nenhuma indústria lítica.
É preciso levar em conta que um biface não era o objetivo dos artesãos pré-históricos, senão um meio, um instrumento e, como tal, era desgastado, deteriorado ou quebrado durante o seu emprego; por isso, quando chegam às mãos do arqueólogo paleolitista ou do tipólogo, encontra-se uma peça que pode ter sofrido câmbios drásticos ao longo da sua vida útil. É habitual detectar gumes reavivados, pontas reconstruídas e silhuetas deformadas por um talhe destinado a continuar aproveitando a peça até esta ser abandonada. As peças podem, até mesmo, ser recicladas posteriormente; neste senso, François Bordes explica que os bifaces se encontram às vezes no Paleolítico Superior. Esta presença, normal no Perigordense I, é com frequência devida, nos outros níveis, a uma recolhida de bifaces musterienses ou acheulenses."[26].
O estudo detalhado da elaboração de uma subpopulação de bifaces
pertencente a uma indústria lítica dada serve para estabelecer uma
descrição precisa do processo de fabricação do biface e para efetuar
comparações estatísticas com outros grupos de bifaces (o que
tecnicamente se chama E. D. A. —exploratory data analysis em inglês— ou “análise exploratória de dados”.
[editar] Análise morfológica
Tradicionalmente, o biface foi orientado com a parte mais estreita
para em cima (pressupondo que esta seria a sua parte mais ativa, o qual
não é disparatado, levando em conta a grande quantidade de "bifaces de
base reservada" que aparecem). O eixo de simetria
que divide em dois o biface é chamado de "eixo morfológico", e a mais
regular e melhor talhada acostuma ser selecionada como "cara principal".
Estes tecnicismos são simples convencionalismos
tipológicos para se compreenderem entre especialistas. Pela mesma
razão, ao descrever a morfologia de um biface (e de qualquer objeto
lítico talhado) é preciso recusar termos que se referem a conceitos
puramente técnicos. Neste caso concreto, é preciso recusar o termo "talão" para se referir à base do biface, pois este vocábulo, em tipologia lítica, apenas abrange uma parte muito concreta da lasca (que nada tem a ver com a base de um biface). Igualmente, seria um erro usar a expressão "zona distal", para referir a zona terminal ou ápice do biface[25].
A Zona Terminal de um biface é, geralmente a parte mais
estreita e oposta à base, a sua forma mais comum é a apontada
—aproximadamente aguda, e ou menos ogival—, também há bifaces com a zona
terminal arredondada ou poligonal —não apontada— e, finalmente, bifaces
de gume terminal transversal ao eixo morfológico da peça, é dizer
bifaces-fendedor[27] e bifaces espatulados…
A Zona Basal, oposta à zona terminal (que acostuma ser mais
larga ou mais grossa), pode ser descrita de frente: "reservada", talhada
parcial ou totalmente, mas não cortante, ou, finalmente, base
"cortante". De perfil é indicado se é arredondada (poligonal), plana ou
apontada; etc.
As Arestas: São descritas morfologicamente de frente, em cujo
caso podem ser convexas, retilíneas ou côncavas; à parte disso podem ser
aproximadamente regulares. Casos especiais são os de arestas
denticuladas —festoadas— ou com entalhes. Neste apartado se teria de
indicar, se assim acontecer, a existência de dorsos corticais sem gume.
Observadas de perfil, as arestas podem ter uma delineação sem
irregularidades (retilíneas ou torsas, ou seja, em forma de suave S)
ou ser, desde ligeiramente sinuosas até muito sinuosas (sempre
referindo às zonas cortantes). Outros dados importantes a considerar
neste apartado é o próprio desenvolvimento do gume, ou seja, se ocupa
todo o perímetro do biface ou somente certas zonas e quais.
A Seção é tomada na zona central do biface ou num setor
próximo do ápice; isto permite compreender como se trabalha cada parte
da peça, e até mesmo discernir retalhes ou reconstruções de zonas
deterioradas da beira. Os tipos de seção podem ser: triangulares (subtriangulares e triangulares com dorso), em losango (romboidais quer sem ou com dorso), trapeziais (trapezoidais e trapeziais com dorso), pentagonais (pentagonoides e pentagonais com dorso), poligonais, biconvexas ou lenticulares (sub-lenticulares), etc.
A Silhueta: Por definição, o biface deveria ter, visto de
frente um contorno aproximadamente equilibrado, com um eixo morfológico
servindo como eixo de simetria bilateral e um plano de esmagamento servindo como plano de simetria bifacial.
Isto não quer dizer que todos os bifaces sejam perfeitamente
simétricos. Em primeiro lugar, a simetria é um sucesso obtido após
milênios de aperfeiçoamento tecnológico, pelo qual não é de estranhar
que as peças mais arcaicas sejam algo dissimétricas. Em segundo lugar, a
simetria é um critério tipológico, mas não necessariamente ajuda a
criar peças mais efetivas. É necessário depreender-se de preconceitos
estéticos presentistas
e não esquecer que os bifaces eram usados em trabalhos duros e
variados: deterioravam-se, desgastavam-se e quebravam-se; pelo qual, com
frequência eram "reparados", talhando de novo os seus gumes,
recuperando as suas pontas ou voltando-os a fabricar completamente. Nos museus, e coleções particulares, peças modelo excepcionalmente belas costumam ser expostas, o qual é didático mas, numa escavação arqueológica,
a maior parte do que chega aos pré-historiadores são despojos, peças
provavelmente rejeitadas após uma longa e complexa vida como
ferramentas: tiveram de adaptar-se a circunstâncias particulares, a
necessidades concretizas que desconhecemos e que, sem dúvida, alteraram a
peça originária; por isso, a simetria —conatural ao conceito clássico e ideal de biface— nem sempre se mantém em peças arqueológicas reais.
Obviando o problema que se acaba de expor, por razões práticas, as
silhuetas dos bifaces são classificadas nas seguintes categorias:
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