segunda-feira, 3 de junho de 2013

MUSEUS DEVOLVEM RESTOS MORTAIS ROUBADOS DE ANTIGAS COLÔNIAS ( Notícias/Mundo )

03/06/2013 - 03h02



DOREEN CARVAJAL
DO "NEW YORK TIMES"

O Museu de História Médica, em Berlim, há mais de um século exibe membros, ossos, pulmões tuberculosos e fetos, tudo em nome da ciência e da educação. Recentemente, porém, seus curadores começaram a reavaliar os princípios que norteiam as exposições diante de uma discussão crescente sobre o que as organizações culturais deveriam fazer para preservar a dignidade dos mortos.
Gordon Welters/The New York Times
Thomas Schnalke, diretor do Museu de História Médica, em Berlim, entre restos mortais humanos em exibição
Thomas Schnalke, diretor do Museu de História Médica, em Berlim, entre restos mortais humanos em exibição
Enquanto isso, grandes museus vêm recebendo reivindicações de devolução de restos mortais humanos de povos dominados. Alguns vêm devolvendo ossos e crânios vistos no passado como objetos exóticos e que, no final do século 19, eram trocados por tecido barato por povos nativos ou roubados por cientistas que estudavam diferenças raciais.
Em abril, o museu médico devolveu 33 crânios e esqueletos à Austrália e a membros de tribos das ilhas do Estreito de Torres, entre o norte da Austrália e Papua-Nova Guiné. A entrega dos restos mortais foi feita em uma cerimônia simples. Os ossos foram entregues em caixas de papelão cinza cobertos por bandeiras brancas e aborígenes.
"Esses são momentos de muita emoção para povos indígenas de todo o mundo", declarou Ned David, das ilhas do Estreito de Torres, que lidera um grupo de repatriação e participou da cerimônia. "Eles estão trazendo para casa os restos mortais de seus antepassados. Há emoções diversas, sendo uma delas o alívio, de modo que é uma festa. Mas o momento também encerra tristeza pelos fatos envolvidos na retirada dos restos mortais."
Na mesma semana, a Associação de Museus da Alemanha divulgou novas diretrizes éticas para museus sobre o tratamento a ser dado a restos mortais, levando em conta os pedidos de repatriação dos mesmos feitos por antigas colônias onde cientistas recolheram crânios e esqueletos sob circunstâncias obscuras mais de um século atrás.
Em um relatório pontuado por alusões ao conceito de dignidade humana de Kant, uma comissão de advogados e curadores recomendou que as instituições façam um estudo sistemático da proveniência dos restos e devolvam aqueles que foram obtidos em decorrência de conflitos violentos. A comissão recomendou que os museus criem uma política e concluiu que "não existe uma resposta simples que possa ser aplicada igualmente a todos os acervos".
Sob muitos aspectos, a associação alemã está se beneficiando da experiência vivida por museus britânicos e americanos, que começaram a receber reivindicações de repatriação de restos humanos décadas atrás. O Instituto Smithsonian, de Washington, começou a repatriar ossadas de indígenas americanos no final da década de 1980. Em 1990, os EUA aprovaram uma lei que torna obrigatória a devolução de tais restos por museus que se beneficiam de recursos federais. Em 2008 e 2010, o Smithsonian, em iniciativa independente, devolveu restos mortais humanos à Austrália.
Muitos dos museus do mundo, especialmente os de história natural, ciência, medicina e arqueologia, possuem restos mortais humanos.
A coleta desses restos em nome do conhecimento científico não era contestada no passado, mas hoje instituições enfrentam o dilema de como exibir múmias egípcias de maneira respeitosa.
Na Inglaterra, o Museu de Manchester acaba de divulgar um documento de seis páginas contendo diretrizes para seu acervo de história natural. O documento promete transparência e respeito por restos mortais humanos. Ele se propõe a modificar exposições antigas para refletir as novas atitudes, oferecendo mais informações sobre as vidas das pessoas preservadas como múmias, por exemplo, para que elas possam ser vistas como indivíduos.
Especialistas na questão da repatriação dizem que, ao que tudo indica, muitos museus estão ficando mais sensíveis. "Ainda há muito trabalho a ser feito", disse Paul Turnbull, professor de história na Universidade de Queensland, na Austrália, e estudioso do uso de restos indígenas. "Mas existe um efeito de contágio. Hoje, ao serem contatados, os museus já se dispõem a falar."
Alguns dizem temer que a repatriação possa prejudicar os estudos, especialmente na medida em que os avanços com pesquisas de DNA permitem que os cientistas tirem mais informações dos restos mortais.
"O perigo é que os museus deixem de explorar porque terão outras prioridades", observou Tiffany Jenkins, socióloga e autora de "Contesting Human Remains in Museum Collections". "Há toda uma gama de pesquisas que estão deixando de ser feitas porque envolvem questões delicadas demais."
A discussão está sendo especialmente perturbadora na Alemanha, onde pedidos de devolução de crânios da Namíbia reabriram um capítulo sombrio da breve história colonial alemã no sudoeste da África --milhares de membros rebeldes de tribos foram mortos por tropas alemãs em 1904. Alguns dos restos mortais foram usados mais tarde por cientistas alemães em estudos científicos desacreditados que visavam documentar a superioridade racial dos europeus sobre as tribos indígenas.
Hoje os responsáveis pelo Museu de História Médica --que possui mais de 5.000 crânios armazenados-- dizem que as novas diretrizes adotadas na Alemanha são apenas o início de um processo em evolução.
Thomas Schnalke, diretor do museu e um dos responsáveis por traçar as diretrizes, comentou que devolver restos mortais provoca mal-estar entre os museus, receosos de que essa repatriação possa intensificar também as reivindicações de devolução de objetos de arte saqueados. "Teme-se que isso possa desencadear uma avalanche", comentou. Porém, até agora, o "efeito avalanche" ainda não aconteceu, disse, e as devoluções ajudaram com o "processo de cura de feridas".

FONTE: Folha.com/Ciência

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