Evolução
O ser humano é o único primata que possui uma quantidade tão pequena de pelos e tantos tons diferentes de pele. Entender como essa característica evoluiu pode ter implicações diretas na saúde da espécie hoje em dia
Guilherme Rosa

A pele humana evoluiu de modo independente em diferentes
partes do mundo. Hoje, quando grande parte das humanidade não se
encontra mais nas regiões onde seus ancestrais se desenvolveram, isso
pode gerar uma série de problemas de saúde
(Thinkstock)
A pele humana é uma evidência direta da evolução. A pequena quantidade
de pelos e os múltiplos tons de pele foram características
cuidadosamente selecionadas durante milhões de anos e representam mais
do que traços cosméticos — eles são responsáveis pela sobrevivência da
espécie. Hoje em dia, no entanto, essas mesmas adaptações podem
conflitar com o estilo de vida moderno. “Toda essa variedade de tons de
pele dentro de uma mesma espécie é incrível. Entender como isso se
desenvolveu desde nossos antepassados pode ter profundas consequências
para a nossa saúde hoje em dia”, diz Nina Jablonski, antropóloga da
Universidade Estadual da Pensilvânia e autora do livro Living Color: The Biological and Social Meaning of Skin Color
(Cores Vivas: Os Significados Biológicos e Sociais da Cor de Pele,
inédito em português). No dia 16, ela participou do Encontro Anual da
Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Boston, EUA, onde
conversou com o site de VEJA.
Segundo as evidências mais recentes, o corpo dos antepassados humanos
era repletos de pelos, como macacos. Eram caçadores-coletores que viviam
nas zonas tropicais da África, onde os alimentos e a água eram
abundantes, e o clima era ameno. Nestas condições, os pelos ajudavam a
reter o calor corporal.
Há cerca de 2 milhões de anos, no entanto, a Terra foi atingida por uma
série de mudanças climáticas, e as florestas locais não passaram
incólumes. Os hominídeos da época começaram, então, a se locomover cada
vez mais para conseguir suprimentos. Ao mesmo tempo, eles passaram a
desenvolver um cérebro cada vez maior, o que seria essencial para o
surgimento do Homo sapiens. O órgão, no entanto, era
extremamente sensível a grandes temperaturas. A maior mobilidade e a
sensibilidade ao calor se tornaram uma combinação perigosa. Assim,
hominídeos com menor quantidade de pelos se tornaram mais aptos a
sobreviver e a passar seus genes adiante — era a seleção natural em
ação. “Começamos a perder nossos pelos para liberar melhor o calor do
corpo”, diz Jablonski. Hoje, os humanos são os únicos primatas — e dos
raros mamíferos — com poucos pelos no corpo.
No entanto, ao perderem os pelos, os hominídeos se tornaram
extremamente vulneráveis ao sol da África tropical: sua pele era muito
clara — como a dos chimpanzés. Ao absorver as grandes quantidades de
raios ultravioleta que incidiam no local, eles podiam sofrer sérias
queimaduras, desenvolver diversos tipos de câncer, além de perder vários
nutrientes da pele. Um deles — o folato — é essencial para o
desenvolvimento correto dos embriões e importante para o sucesso
reprodutivo humano. Assim, a pele desses ancestrais foi ficando cada vez
mais rica em melanina, um pigmento responsável por escurecer a pele e
protegê-la dos raios ultravioleta. “Não há nenhuma relação genética
entre a perda de pelo e a mudança da cor da pele. Eles apenas
aconteceram em um período histórico próximo: um veio mitigar os efeitos
do outro”, diz Nina Jablonski.
Explorando o planeta — Esses ancestrais humanos
continuaram seu percurso natural de evolução, com cérebros cada vez
maiores e postura cada vez mais ereta. Há 200.000 anos, sua anatomia
tornou-se semelhante à do homem moderno, dando origem ao Homo sapiens.
Mesmo após surgir como espécie, os seres humanos continuaram na África
por mais de metade de sua história na Terra, carregando a pigmentação de
pele perfeita para a incidência solar na região. No entanto, há 80.000
anos, os primeiros humanos começaram a deixar o continente rumo à Europa
e à Ásia. Em sucessivas ondas de migração, passaram a encontrar novos
ambientes, com latitudes e altitudes maiores — e menor incidência de
raios ultravioleta.
O problema é que essa mesma radiação, que pode ser perigosa quando
absorvida em excesso, também é essencial para a síntese de vitamina D no
sangue humano. A falta dessa vitamina diminui a absorção de cálcio e
deprime o sistema imunológico. Sua ausência crônica pode levar a
problemas no parto, deformidades e até morte. Mais uma vez, a seleção
natural começava a favorecer uma mudança na cor da pele: pessoas com
menos pigmentação conseguiam produzir mais vitamina a partir do parco
sol local, tornando-se mais aptas a sobreviver.
Segundo Nina Jablonski, a pele mais clara se desenvolveu três vezes de
maneira isolada entre os ancestrais humanos. “Uma dessas vezes foi entre
os Neandertais europeus, que, segundo estudos genéticos, tinham peles
claras e cabelos ruivos. As outras duas foram entre os Homo sapiens
europeus e os asiáticos”, diz. Há mais de uma década, a antropóloga
publicou o primeiro estudo que mostrava as relações entre a incidência
de raios ultravioleta no mundo e a distribuição das populações com
diferentes tons de pele.

A história na pele: a antropóloga Nina Jablonski mostrou que a cor da
pele é uma adaptação evolutiva. Hoje, ela pesquisa como essa mesma pele
afeta a absorção de radiação ultravioleta e a produção de vitamina D nas
diversas populações
Cultura na pele — Durante dezenas de milênios, as
diversas populações, com seus diversos tons de pele, continuaram a se
desenvolver de maneira isolada ao redor do mundo. Quando esses povos
voltaram a se encontrar, foi natural que a cor de pele alheia chamasse
atenção. Segundo Jablonski, isso acontece porque os humanos são animais
visuais. Mas, ela destaca, isso não quer dizer que eles estão
geneticamente programados para o preconceito. Não existe nenhuma
evidência de que os primeiros encontros entre populações de tons de pele
diferente tenham sido afetados por essa predisposição. As relações
entre Egito e Grécia antiga, por exemplo, podiam até ser violentas, mas a
cor da pele não era vista como sinal de valor humano.
Foi somente com as grandes navegações que essa questão se tornou
importante. Com o contato cada vez maior entre os povos, a cor da pele
começou a ganhar enorme valor cultural. Biologicamente, a pigmentação é
apenas o resultado da necessidade corporal de se adaptar ao ambiente. No
entanto, nesse tempo ela passou a ser entendida como sinal de
hierarquia - inferioridade ou superioridade - entre as populações.
Assim, mesmo sem ter nenhuma base científica, o argumento justificava a
dominação econômica de populações inteiras, como a escravização das
tribos africanas trazidas ao Brasil.
Herança genética — Hoje, a viagens pelo mundo se dão de forma
muito mais rápida e em quantidades muito maiores do que na época das
grandes navegações. As populações urbanas se tornaram ainda mais
variadas, com habitantes de todos os cantos do planeta. Essa convivência
entre os diferentes povos ajudou a diminuir os preconceitos. No
entanto, os tons de pele da população deixaram de estar associados à
região do planeta onde habitavam, e isso começou a afetar a saúde.
“Alteramos o equilíbrio que houve durante a evolução humana. Grande
parte da população mundial vive longe de onde seus ancestrais viveram,
com consequências previsíveis para sua saúde”, diz Nina Jablonski.
Os problemas podem ser sentidos tanto pelas populações de pele clara
habitando regiões equatoriais, quanto por populações de pele mais escura
em regiões de alta latitude. Além disso, quase 60% da humanidade vive
em cidades, onde a exposição à luz do sol é mínima. “Durante 200.000
anos, nós passamos grande parte de nossos dias nos ambientes externos. A
partir do último século, no entanto, começamos a gastar a maior parte
do nosso tempo dentro das construções”, diz Nina, que conduz uma série
de estudos para medir a quantidade de sol absorvida por diferentes
populações ao redor do mundo e as consequências disso para sua saúde.
Os resultados iniciais de sua pesquisa são preocupantes. “Constatamos
que a falta de radiação ultravioleta está levando a sérias deficiências
na quantidade de vitamina D”, diz. Segundo a antropóloga, os cuidados
necessários para se proteger do excesso de radiação ultravioleta já
estão bem divulgados — usar protetor solar, evitar as horas de sol mais
intenso —, mas o mesmo não é verdade para os efeitos deletérios da falta
de vitamina D.
A pesquisadora diz que a ausência dessa vitamina pode ser parcialmente
responsável por grande parte dos problemas de saúde que atingem minorias
populacionais nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, como
problemas cardiovasculares, diabetes e câncer. “Ao diminuir as funções
do sistema imunológico, isso pode tornar essas populações mais
suscetíveis a gripes e resfriados, além de infecções mais sérias”, diz.
Também existem evidências de que a deficiência crônica de vitamina D
está levando a um aumento nos casos de depressão sazonais.
A solução para esses problemas é simples. Pessoas com pele mais escura
vivendo em zonas temperadas, por exemplo, podem simplesmente decidir
tomar mais sol, ou podem escolher repor a quantidade diária que lhe
falta com suplementos de vitamina D. Para isso, no entanto, elas
precisam conhecer as necessidades específicas de sua pele. É impossível
voltar atrás da sociedade globalizada. Não existe como — e nem seria
desejável — as diversas populações do mundo voltarem para seus locais de
origem. Segundo Nina Jablonski, o melhor modo de superar o descompasso
entre tom de pele e radiação solar é a partir do conhecimento sobre sua
herança genética. Ao saber de onde veio sua pele, como ela adquiriu sua
cor atual, é possível protegê-la dos efeitos da vida moderna.
FONTE: Revista Veja/Ciência
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