CULTO AO MARFIM
Milhares de elefantes morrem a cada ano para que suas presas sejam transformadas em objetos religiosos. É possível acabar com essa matança?
Foto:
Brent Stirton
Um deles, Kruba Dharmamuni, conhecido como o Monge Elefante, se dispõe a
me acompanhar às lojas de marfim em Surin. Nessa cidade viviam os
fornecedores de elefante para o rei do Sião. Hoje os mahouts,
tratadores de elefante, são subsidiados pelo governo e vivem à sombra da
glória passada – agora dependem da habilidade de seus animais para
chutar bolas e entreter os turistas. Barracas vendendo anéis, pulseiras e
amuletos de marfim ladeiam a entrada do parque de Surin. “O marfim
afasta os maus espíritos”, assegura o Monge Elefante.
O elefante é o símbolo nacional da Tailândia. Reza a lenda que um
elefante branco com seis presas penetrou o flanco direito da rainha Maia
na noite em que ficou grávida de Sidarta Gautama. O Monge Elefante
acredita ter sido esse animal em uma de suas existências anteriores.
Embora tenha se vangloriado de contar com 100 mil seguidores ao redor do
mundo, em minha visita a seu templo vi apenas um punhado deles. Eles
prostraram-se a seus pés com oferendas e receberam em troca amuletos
abençoados.
É comum entre os tailandeses o uso de amuletos, às vezes dezenas deles,
pois consideram que trazem sorte e os protegem de malefícios e
feitiços. Em Bangcoc, o mercado onde são vendidos é enorme, com
incontáveis barracas exibindo dezenas de milhares de pequenos talismãs
feitos de metal, pó prensado, ossos – e marfim. Os amuletos mais caros
chegam a superar os 100 000 dólares. Há revistas, feiras, livros e sites
para os colecionadores. Em quase todos os táxis tailandeses veem-se
amuletos pendurados no espelho retrovisor. Thaksin Shinawatra, o
primeiro-ministro afastado por um golpe, atribui a um amuleto budista o
fato de ter sobrevivido a tentativas de assassinato, e o Exército
distribui amuletos aos soldados estacionados na fronteira para que não
sejam enfeitiçados pela magia negra cambojana.
A grande fonte de renda do Monge Elefante são os amuletos, que ele
oferece em curiosa variedade, incluindo imagens de si mesmo e do Buda,
assim como fragmentos plastificados de ossos do crânio de mulheres
grávidas mortas, óleo puro de cadáveres, terra de sete cemitérios, pelo
de tigre e couro de elefante. Os negócios correm tão bem que ele está
construindo um templo, Wat Suanpah, em parte inspirado nos populares
parques de tigres tailandeses – muitas vezes considerados pelos críticos
como negócios de fachada para o comércio ilegal desses animais. O
próprio Monge Elefante foi alvo de uma controvérsia parecida, quando uma
recente reportagem de televisão mostrou que ele havia obrigado um
elefante a morrer de fome para aproveitar o couro e as presas. O monge
alega que o animal morreu de causas naturais. Antes da reportagem, ele
ganhava 1 milhão de bahts (32 000 dólares) por mês com sua loja, pela
internet e em viagens ao exterior. Agora, sua renda caiu para cerca de
300 000 bahts por mês. No entanto, diz ele, em apenas três dias na
Malásia ou em Cingapura, ele poderia vender a seus seguidores artigos no
valor de mais de 1 milhão de bahts.
A Tailândia tem pequena população nativa de elefantes asiáticos, uma
espécie ameaçada e, há muito tempo, fora do circuito do comércio
internacional. No interior do país, contudo, as regras são menos
rígidas. Mahouts e outros podem vender as extremidades das
presas dos elefantes domesticados vivos, assim como presas inteiras dos
que morrem de causas naturais. Durante anos, traficantes internacionais
se aproveitaram dessa situação, contrabandeando para o país matériaprima
africana e misturando-a à asiática.
Conservacionistas referem-se a isso como a “brecha tailandesa”, mas há
uma lacuna ainda maior usada por todos os países do mundo. O marfim
africano introduzido no país antes de 1989 pode ser negociado no mercado
interno. Com isso, todos os que são surpreendidos com ele evocam a
mesma justificativa: “Este marfim é de antes da proibição”. Como nunca
se fez inventário do estoque global de marfim anterior a 1989, e como
ele dura praticamente para sempre, essa brecha é uma defesa sempre
válida.
O mercado de marfim tailandês está evoluindo. “Os negociantes estão
formando estoques”, comenta Steve Galster, diretor da Fundação Freeland,
uma ONG com sede em Bangcoc. “Como a Cites tem histórico de afrouxar as
proibições, eles acham que essa é uma aposta segura.”
Tal como as Filipinas, a Tailândia conta com outra facilidade apreciada
pelos traficantes: a corrupção. Há pouco tempo, 1 tonelada de marfim
africano desapareceu dos galpões da alfândega tailandesa. Quando pedi
para ver o restante, os funcionários se recusaram e insinuaram que havia
sido roubado por jornalistas. Tão difundida é a corrupção nas Filipinas
que, em 2006, o ministério responsável pela fauna silvestre processou
funcionários da alfândega pela “perda” de várias toneladas de marfim
apreendido.
O entalhador predileto do Monge Elefante, Jom, vive em uma estradinha
de terra em local tão remoto que as moitas de vegetação diante de sua
casa são, na verdade, vitrines de joias repletas de estatuetas de marfim
do Buda. A maior parte desse material é tailandesa. “Este é africano”,
comenta o Monge Elefante, apontando para uma peça branca.
“Se eu lhe trouxer marfim africano”, pergunto a Jom, “você o entalharia?” “Dai”,
responde. “Não há problema nenhum”, concorda a mulher dele. E basta
isso para que o Monge Elefante comece a falar de contrabando. Ele me
recomenda cortar o marfim para que caiba na mala, indicando com as mãos o
tamanho adequado das peças. “Isso é o que o fazem meus devotos”, conta.
Quando desembarcar no aeroporto de Bangcoc, um de seus assistentes
estará a minha espera para me conduzir. Tem conhecidos no setor de
imigração, mas, se algo der errado, devo dizer que estou levando o
marfim ao templo dele. A religião, parece, vai me servir de
justificativa.
Como a fé pressupõe uma dose de confiança, o marfim comerciado por
motivos religiosos não atrai o mesmo escrutínio agressivo caso fosse
esculpido, por exemplo, em peças de jogo de xadrez. O marfim divino
desfruta de uma brecha própria.
FONTE: Revista National Geographic Brasil
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