CULTO AO MARFIM
Milhares de elefantes morrem a cada ano para que suas presas sejam transformadas em objetos religiosos. É possível acabar com essa matança?
Foto:
Brent Stirton
A casa de um colecionador filipino está repleta de imagens religiosas
de marfim. "Não vejo o elefante", comenta outro colecionador do país
asiático. "Vejo apenas o Nosso Senhor"
O experimento japonês
Em 1989, no fim de uma década que viu o abate de pelo menos um elefante
a cada dez minutos, o Quênia incinerou suas 12 toneladas de presas
estocadas e a Cites anunciou a proibição global do comércio, que começou
no ano seguinte. Nem todos os países concordaram. Zimbábue, Botsuana,
Namíbia, Zâmbia e Malaui adotaram o regime de exceções, isentando-os da
proibição, com base no fato de que suas populações de elefantes eram
saudáveis o bastante para permitir o abate. Em 1997, a Cites realizou
sua principal reunião em Harare, no Zimbábue. Na ocasião, o presidente
Robert Mugabe afirmou que os elefantes ocupavam muito espaço e consumiam
água demais – e que um modo de compensar isso seria o aproveitamento de
suas presas. As autoridades do Zimbábue, de Botsuana e da Namíbia
fizeram então uma proposta à Cites: elas acatariam a proibição do
comércio desde que lhes fosse permitido vender presas de elefantes
mortos legalmente ou de causas naturais.
A Cites tomou então uma decisão conciliatória autorizando uma única
“venda experimental” dos três países para apenas um comprador, o Japão.
Em 1999, o Japão adquiriu 50 toneladas de marfim por 5 milhões de
dólares. Em seguida, ele declarou que queria mais, e logo a China se
interessou por essa forma legal de obter marfim. Antes de permitir
outras vendas, a Cites quis saber dos resultados do experimento japonês:
a venda havia aumentado as atividades criminosas? Houve acréscimo no
abate ilegal de elefantes? Para tanto, foram criados dois programas, um
para avaliar o número de animais mortos e outro para medir o contrabando
de marfim.
Embora seja fácil matar elefantes (nos últimos tempos, caçadores
ilegais no Quênia e na Tanzânia passaram a usar melões envenenados), o
mesmo não vale para a localização dos cadáveres, e por isso a Cites
levou anos para pôr em prática um programa de contagem das mortes. Os
funcionários da Cites recusam-se a divulgar uma estimativa oficial dos
elefantes mortos a cada ano, pois temem que, seja qual for o número,
baseado em estimativas da população em 2007 e em dados restritos sobre
mortes ilegais em 2012, ele acabará “se consolidando como verdade
absoluta perante a opinião mundial”. Mesmo assim, segundo Kenneth
Burnham, estatístico da Cites que monitora a matança ilegal, é “bem
provável” que os caçadores tenham abatido pelo menos 25 mil elefantes
africanos em 2011. O número real pode até ser o dobro disso. Ao mesmo
tempo, no ano passado estima-se que 31,5 toneladas de marfim ilegal
tenham sido apreendidas em todo o mundo. Usando uma regra prática da
Interpol, segundo a qual as apreensões equivalem a 10% do tráfico
efetivo, e supondo que cada elefante tenha 10 quilos de presas, obtém-se
um resultado equivalente a 31 500 elefantes mortos. “O importante”, diz
Iain Douglas-Hamilton, da organização Save the Elephants, “é que
dezenas de milhares de elefantes foram abatidos em 2011. E que esses
números estão aumentando de forma dramática.”
Não é nada fácil, também, quantificar o tráfico ilegal. Os
contrabandistas não divulgam relatórios de vendas. O aumento das
apreensões em um ano pode significar crescimento no contrabando ou ainda
atividade policial mais eficiente – ou ambas as coisas. A diminuição
das apreensões pode acenar uma melhora na situação, mas também aumento
nas práticas de corrupção. Os grandes contrabandistas estão infiltrados
nos órgãos locais de proteção à fauna silvestre, nas alfândegas e nas
empresas de carga e transporte que lhes permitem movimentar
carregamentos de várias toneladas de um país a outro. Pior ainda, um
sistema baseado em apreensões recompensa os países que confiscam
carregamentos de marfim quando, na verdade, o que deveriam fazer é
seguir as presas contrabandeadas por toda a cadeia de compradores até os
chefes das operações ilegais. É por isso que os bons investigadores
consideram as apreensões pouco produtivas.
Para estimar as coleções de marfim, a Cites associou-se à Traffic, uma
organização que monitora o tráfico global de fauna silvestre. Mas o fato
é que a Traffic não pode ser considerada uma auditoria independente.
Ela é subsidiária do WWF e da União Internacional para a Conservação da
Natureza (IUCN, na sigla em inglês), as quais, como tantas outras ONGs,
mantêm projetos de pesquisa e escritórios em países em que ocorre
tráfico de marfim, o que prejudica muito a capacidade da Traffic de
atuar com isenção. Um exemplo é o novo programa de monitoramento de
apreensões de marfim, o Sistema de Informação sobre o Comércio de
Elefantes (Etis, na sigla em inglês), baseado no Zimbábue, o principal
país africano favorável a esse comércio.
Desde o princípio, a Traffic anunciou que o banco de dados do Etis
remontava até a proibição em 1989, mas o fato é que só a partir de 1998
os países começaram a fornecer ao Etis informações sobre as apreensões.
Durante uma década, seus dados vieram de levantamentos aleatórios feitos
pela Traffic, que contava com escassas informações das apreensões em
países cruciais, como o Japão (20 casos em uma década), a Tailândia (21
casos), as Filipinas (5) e a China (2). Governos raras vezes se deram ao
trabalho de relatar suas apreensões ao Etis. Por isso, no momento de
avaliar o experimento japonês, o banco de dados da Traffic apresentava
um viés em termos de casos originários dos Estados Unidos e da União
Europeia (mais de 60%), em detrimento da região mais relevante, a Ásia
(menos de 10%). Em suma, o Etis não dispunha de dados suficientes para
avaliar os efeitos da venda ao Japão.
A Cites poderia ter optado por uma abordagem mais abrangente do
experimento, mesclando relatórios de ONGs internacionais, cujos
investigadores infiltrados constataram aumento no tráfico após a venda
ao Japão, com os dados da Traffic, cujas estatísticas do Etis não
mostram nenhuma correlação evidente entre a venda e as apreensões.
Poderia ainda ter reconhecido as limitações do Etis, cujo parâmetro, as
apreensões, está sob controle nos países avaliados. E, como a Cites
também teve problemas para medir a caça ilegal de elefante, ele poderia
ter considerado o experimento japonês inconclusivo – ou um fracasso.
A China o avaliou dessa forma. Em um relatório de 2002, as autoridades
chinesas alertaram a Cites de que a principal explicação para o
agravamento do problema do contrabando de marfim no país era exatamente o
experimento japonês: “Muitos chineses entenderam mal a decisão e
acreditam que o comércio internacional foi retomado”. Os consumidores
chineses ficaram com a impressão de que não havia mais nenhum problema
em adquirir objetos de marfim.
FONTE: Revista National Geographic Brasil
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