CULTO AO MARFIM
Milhares de elefantes morrem a cada ano para que suas presas sejam transformadas em objetos religiosos. É possível acabar com essa matança?
Foto:
Brent Stirton
Alguns dos últimos elefantes com enormes presas estão em Tsavo. Uma
única presa pode ser vendida por até 6.000 dólares, o suficiente para
manter um trabalhador não especializado no Quênia por dez anos
O padre aponta para um Santo Niño que segura uma pomba. “Quase todas as
peças de marfim mais antigas são herdadas”, explica. “Já as novas vêm
da África. E entram por baixo do pano.” Em outras palavras, são
contrabandeadas. “É como endireitar uma linha torta: você compra o
marfim de origem obscura e o transforma em algo espiritual, você
entende?”, justifica-se com um sorriso constrangido. Sua voz vira um
sussurro: “Pois, no fundo, é como comprar algo roubado”.
Para ele, é melhor que as pessoas adquiram estatuetas de marfim novas,
evitando os vigaristas, que usam chá ou mesmo Coca-Cola para dar a
impressão de peças antigas. Mas, quando pergunto como as peças novas de
marfim chegam às Filipinas, ele revela que são contrabandeadas pelos
muçulmanos da ilha de Mindanao. Em seguida, fazendo um gesto de suborno,
enfia dois dedos no bolso de minha camisa. “Para os agentes da Guarda
Costeira, por exemplo”, diz. “Imagine o trajeto da África até a Europa e
as Filipinas, toda a longa travessia de barco...” Volta a colocar os
dedos em meu bolso. “É preciso pagar a muita gente para facilitar a
entrada no país.”
Tudo faz parte das oferendas ao Santo Niño. O contrabando de marfim é um ato de devoção.
Rotas do contrabando
Não tinha a menor expectativa de vincular o monsenhor Garcia a qualquer
atividade ilegal, mas, quando digo que quero comprar um Santo Niño, ele
me surpreende. “Vai ter de contrabandeá- lo para os Estados Unidos.”
Simples assim.
“Como assim?”, questiono. “Embrulhe-o em uma roupa de baixo suja e
malcheirosa, e derrame um pouco de ketchup”, explica. “Vai ficar com uma
aparência nojenta. É assim que se faz.”
Garcia passa-me alguns nomes de entalhadores de marfim, todos em
Manila, assim como dicas sobre quem pode fornecer quantidades maiores,
quem cobra caro demais e quem não cumpre prazos. Também me dá números de
telefones e endereços. Se eu quiser levar uma estátua grande demais
para esconder na mala, talvez consiga um atestado do Museu Nacional das
Filipinas, afirmando que a imagem é uma antiguidade. Outro caminho é
obter de um entalhador uma declaração escrita de que se trata de uma
imitação ou, ainda, conseguir que a data do entalhe seja alterada de
modo que fique anterior à proibição. Qualquer que seja a peça escolhida,
Garcia compromete-se a abençoá-la para mim. “Ao contrário desses padres
loucos por animais que se recusam a abençoar imagens”, diz.
O entalhe de marfim em Manila é controlado por poucas famílias, que,
como cupins, processam quantidades imensas de presas. Nas cinco viagens
que fiz às Filipinas, visitei as cinco lojas que me haviam sido
recomendadas por Garcia, e também outras, afirmando que estava
interessado em adquirir peças de marfim. Mais de uma vez me perguntaram
se eu era padre. Em quase todas as lojas, alguém me propôs um esquema de
contrabando da peça para os Estados Unidos. Em uma ocasião,
ofereceram-se para pintar o marfim com aquarela marrom removível que lhe
daria aparência de madeira; em outra, propuseram fazer estatuetas de
resina idênticas, pintadas a mão, entre as quais seguiria, camuflado,
meu Menino Jesus de marfim. Em determinada loja, uma das vendedoras
disse que o monsenhor Garcia acabara de ligar, sugerindo que, como eu
mencionara que minha família tinha uma funerária, poderia levar uma
enorme estátua do Santo Niño, pesando 9 quilos, oculta no fundo falso de
um ataúde. Comentei que o monsenhor devia estar brincando, mas ficou
evidente que essa não era a opinião da vendedora.
Sacerdotes, balikbayans (filipinos que vivem no exterior) e
homens gays filipinos são os principais compradores, segundo o mais
importante mercador de marfim em Manila. Um antiquário de Nova York
costuma viajar para lá com frequência, assim como um negociante da
Cidade do México, para adquirir lotes de crucifixos, Nossas Senhoras e
Meninos Jesus de marfim, os quais, em seguida, são contrabandeados em
suas bagagens. Onde quer que haja um filipino, várias vezes me
lembraram, há um altar a Deus.
O padre Jay tem razão a respeito da rota de abastecimento islâmica, ao
que parece. Vários negociantes de Manila contam-me que seus principais
fornecedores são muçulmanos filipinos com contatos na África, assim
como, em menor grau, muçulmanos malaios. “Às vezes, entregam as presas
ainda ensanguentadas e cheirando mal”, revela-me uma vendedora prendendo
o nariz.
O atual tráfico de marfim segue antigas rotas mercantis, em travessias
aceleradas por viagens aéreas, celulares e internet. As recentes
apreensões em Zanzibar, uma ilha ao largo da Tanzânia – durante séculos,
um centro global do tráfico de escravos e presas de elefante –,
parecem-me especialmente agourentas, sinal de que o comércio de marfim
em grande escala talvez nunca acabe.
O mercado das Filipinas é pequeno se comparado ao chinês, mas existe há
séculos. Colecionadores e negociantes trocam fotos de suas peças no
Flickr e no Facebook. A Cites é o órgão que impede o retorno à matança
da década de 1980, durante a qual estima-se que a África tenha perdido
metade de seus elefantes, mais de 600 mil. Se a Cites não se dá conta do
que ocorre nas Filipinas, o que mais está sendo ignorado?
O monge elefante
Os entalhadores de Phayuha Khiri e Surin são os mais renomados da
Tailândia e os principais alvos de investigações do comércio ilegal. O
marfim é tão importante em Phayuha Khiri que, no centro do vilarejo,
onde se esperaria ver uma fonte, há um círculo formado por quatro
grandes presas brancas. Poucos minutos depois de chegar à rua principal,
ocorre-me que já vira um lugar como aquele: Tayuman, o bairro de
artigos religiosos em Manila. A única diferença é que, na Tailândia, em
vez de crucifixos e imagens da Sagrada Família, proliferam as estátuas
em tamanho natural de monges, estatuetas do Buda, braceletes e outros
objetos vendidos a granel. Lojas e lojas de artigos budistas. As únicas
pessoas que vejo comprando algo em minhas visitas a Phayuha Khiri são
monges com túnicas alaranjadas.
Descubro quem é o principal negociante de marfim no vilarejo – o senhor
Thi, que exibe um amuleto de marfim e um cinto com fivela também de
marfim. Visito suas lojas e oficinas de entalhe, e conheço até mesmo sua
casa, grande e luxuosa. Ele conta que a atividade de entalhe em Phayuha
Khiri começou com um monge que gostava de fazer amuletos, que hoje são
distribuídos em troca de doações. Os amuletos abençoados por certos
monges são ainda mais valiosos.
FONTE: Revista National Geographic Brasil
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