Outubro de 2012/Edição 151
28/09/2012
Culto ao marfim
Milhares de elefantes morrem a cada ano para que suas presas sejam transformadas em objetos religiosos. É possível acabar com essa matança?
por Bryan Christy
Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL
Foto:
Brent Stirton
Kruba Dharmamuni, o famoso Monge Elefante, mantém os animais em seu
templo na Tailândia. Ativistas o acusam de deixar um elefante morrer de
fome para usar as presas em amuletos. Ele nega
Em janeiro deste ano, uma centena de cavaleiros irrompeu pela fronteira
do Chade, invadiu o Parque Nacional Bouba Ndjidah, em Camarões, e
massacrou centenas de elefantes, em uma das piores matanças isoladas
desde que, em 1989, foi implementada a proibição mundial do comércio de
marfim. Empunhando fuzis AK-47 e lançadores de granada, eles aniquilaram
os elefantes com uma precisão militar que lembrou outra carnificina
ocorrida em 2006 perto do Parque Nacional Zakouma, no Chade. Encerrado o
ataque, alguns fizeram uma pausa a fim de orar a Alá. As carcaças dos
animais são um monumento à cobiça humana; a caça de elefante alcançou os
piores níveis em uma década, e as apreensões de marfim ilegal são as
maiores nos últimos anos. Vistos do céu, os cadáveres formam um cenário
medonho. É possível notar quais animais tentaram fugir e quais mães
morreram ao proteger seus filhotes.
A conexão filipina
Em uma igreja lotada, o monsenhor Cristobal Garcia, um conhecido
colecionador de peças de marfim nas Filipinas, preside a um ritual
inusitado em torno de uma das mais importantes imagens religiosas do
país, o Santo Niño de Cebu (o Menino Jesus de Cebu). A cerimônia, por
ele realizada todos os anos em Cebu, é conhecida como Hubo, que, em
cebuano, significa “desvestir”. Diversos coroinhas unem-se para despir
uma estatueta de madeira de Cristo vestido como rei, a réplica de um
ícone que, acreditam os fiéis, foi levado à ilha por Fernão de
Magalhães, em 1521. Eles retiram a coroa, a túnica vermelha e as
minúsculas botas, assim como as roupas de baixo sobrepostas. Em seguida,
o monsenhor apanha a estatueta, oculta pelos coroinhas com uma
toalhinha branca, e a mergulha em barris com água, criando assim o
estoque anual de água benta da paróquia, que depois será comercializado
em garrafinhas.
Garcia é um homem corpulento, com a pálpebra esquerda caída e problema
nos joelhos. Em meados da década de 1980, era padre na igreja quando foi
acusado de abusar de um adolescente. Afastado das funções, retornou às
Filipinas, foi promovido a monsenhor e tornou-se o responsável pela
Comissão Arquidiocesana de Liturgia. Com isso, tornou-se chefe do
protocolo da maior arquidiocese católica no país, um rebanho de 4
milhões de fiéis em um país que conta com 75 milhões de católicos – a
terceira maior congregação dessa fé no mundo. O monsenhor é conhecido
fora de Cebu. Em 1990, o papa João Paulo II abençoou o Santo Niño por
ocasião de uma visita do prelado a Castel Gandolfo, a residência de
verão do pontífice.
Para alguns filipinos, o Santo Niño de Cebu é o próprio Cristo. No
século 16, os espanhóis consideraram milagrosa a imagem, e a usaram para
converter a população local, fazendo da estatueta de madeira, hoje
guardada em uma vitrine à prova de bala na Basílica Minore del Santo
Niño, em Cebu, o próprio fundamento do catolicismo filipino. “Todo
filipino, mesmo os sem-teto, tem uma imagem do Santo Niño”, afirma o
padre Vicente Lina Jr., que prefere ser chamado de “padre Jay” e é
diretor do Museu Diocesano de Malolos.
Todo mês de janeiro, 2 milhões de fiéis afluem a Cebu para participar
da procissão encabeçada pelo Santo Niño. A maioria leva estatuetas, e
muitos acreditam que a devoção investida em seus ícones vai se refletir
nas bênçãos que podem receber. Por esse motivo, para alguns, não basta a
estatueta feita de fibra de vidro ou de madeira; o ideal é que ela seja
de marfim de elefante.
Avanço com a multidão durante a missa celebrada por Garcia, mas, no
momento de comungar, me ajoelho em vez de permanecer em pé diante do
sacerdote. “O corpo de Cristo”, entoa Garcia. “Amém”, respondo e abro a
boca.
Depois da missa, conto a Garcia que sou de national geographic, e
marcamos um encontro para ele falar sobre o Santo Niño. A antessala de
seu gabinete é um minimuseu, repleto de grandes estátuas religiosas com
cabeça e mãos de marfim. Em geral, os filipinos possuem dois tipos de
santo: ou imagens ou então estatuetas sólidas de madeira cujas mãos e
cabeça, às vezes em tamanho natural, são de marfim. Garcia é o principal
dentre proeminentes colecionadores que, durante a Festa do Santo Niño,
cedem suas peças para exposições nos melhores shoppings e hotéis de
Cebu. Certa vez, reunidos para discutir a formalização oficial do grupo,
um dos membros, advogado, exclamou, referindo-se à remuneração para a
tramitação do processo: “Meus honorários vocês podem pagar em marfim”.
Digo a Garcia que gostaria de comprar um Santo Niño de marfim em
tradicional postura adormecida. “Desse modo”, explico, encostando o dedo
indicador em meu lábio inferior. Garcia imita o gesto. “Ah, no estilo dormido”,
comenta, com aprovação. Meu objetivo ao entrar em contato com Garcia é
entender como funciona o comércio de marfim nas Filipinas e talvez
conseguir uma pista sobre quem está por trás das 4,9 toneladas de marfim
apreendidas pelos agentes aduaneiros de Manila em 2009, das 7 toneladas
ali confiscadas em 2005 e das 5,5 toneladas apreendidas em Taiwan em
2006 e que se destinavam às Filipinas. Supondo uma média de 10 quilos de
marfim por elefante, tais apreensões representam nada menos que 1 745
elefantes mortos. De acordo com a Convenção sobre o Comércio
Internacional das Espécies da Fauna e Flora Silvestres Ameaçadas de
Extinção (Cites, na sigla em inglês), as Filipinas não passam de um
ponto de escala para o marfim com destino à China. Mas a Cites dispõe de
recursos limitados. E sua avaliação do tráfico nas Filipinas não
confere com o que Jose Yuchongco, chefe da polícia aduaneira, declarou a
um jornal de Manila pouco depois de realizar uma apreensão em 2009: “As
Filipinas são um destino privilegiado do contrabando de presas de
elefante, talvez devido à predileção dos católicos do país por imagens
de santos feitas de marfim”. Em Cebu, o elo entre marfim e Igreja é tão
forte que a palavra que designa “marfim”, garing, também significa “estátua religiosa”.
O submundo católico-islâmico
“Marfim, marfim, marfim”, diz a vendedora na Galeria Savelli, uma loja
instalada na praça de São Pedro, na Cidade do Vaticano, em Roma. “Você
não esperava ver tantas peças desse material. Dá para notar por sua
expressão.” Há pouco tempo, o Vaticano mostrou-se empenhado em
confrontar o tráfico de drogas, o terrorismo e o crime organizado.
Contudo, por não ser signatário do tratado da Cites, o Estado pontifício
não está sujeito à proibição do comércio. Se eu quiser um crucifixo de
marfim, diz a vendedora, a própria loja se encarrega de que seja
abençoado por um padre do Vaticano, antes de enviá-lo a mim.
Embora o mundo tenha encontrado substitutos para todas as utilidades
práticas do marfim – bolas de bilhar, teclas de piano, cabo de escova –,
seu uso religioso continua preservado, e persiste seu papel de símbolo
político. Em 2011, o presidente do Líbano, Michel Sleiman, presenteou o
papa Bento XVI com um turíbulo de marfim e ouro. Todos esses presentes
foram mencionados na imprensa internacional. Até mesmo o presidente do
Quênia, Daniel Arap Moi, inspirador da proibição mundial do comércio do
marfim, certa vez ofereceu ao papa João Paulo II uma presa de elefante.
Mais tarde, Moi faria um gesto incisivo, mandando incinerar 12 toneladas
de marfim queniano, talvez o ato simbólico mais espetacular na história
da conservação.
O padre Jay é curador da exposição anual sobre o Santo Niño, organizada
pela arquidiocese para celebrar o que há de melhor nas coleções de seus
paroquianos. Os mais de 200 artigos expostos estão rodeados por tantas
flores frescas e embalados por tantas notas adocicadas de música
religiosa que fico com a impressão de estar em um funeral. Os Santos
Niños de marfim usam coroa dourada, joias e colares de cristal
Swarovski. Seus olhos são pintados a mão em vidro importado da Alemanha.
Os cílios, feitos de pelo de cabra. Os fios de ouro nas túnicas são
legítimos, importados da Índia. Muitas vezes, os donos dessas estatuetas
são famílias de recursos modestos. E os devotos costumam incluir as
imagens de marfim nos testamentos. “Não acho que isso seja
despropositado”, diz o padre Jay. “Considero mais como uma oferenda a
Deus.”
FONTE: Revista National Geographic Brasil
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