Aquecimento global
O vegetarianismo pode salvar o mundo?
Cientistas propõem que 
três quartos do consumo atual de carne sejam cortados para que todos 
tenham o que comer no futuro. Mas será que a humanidade pode abrir mão 
da carne?
Guilherme Rosa
        
         
        
        
        
          
            
              Dê adeus a esta cena: pesquisadores dizem que a criação de animais consome água demais
            
            
              (Thinkstock)
            
          
 
	Há três semanas, pesquisadores de todo o mundo se reuniram em 
Estocolmo, na Suécia, para participar da Semana Mundial da Água. Ali, em
 meio a discussões sobre o futuro do planeta, chegaram a conclusões 
alarmantes: até 2050, não haverá água para todos. Com a seca, teremos 
crises de desnutrição e fome, que podem levar a disputas violentas pelas
 últimas terras férteis do mundo. Mas nem todas as previsões foram 
catastróficas. Os cientistas também esboçaram soluções que poderiam 
prevenir esse cenário e garantir a cada um sua parcela justa de água e 
comida.
	Entre as saídas apresentadas estavam a irrigação mais eficiente, menor 
desperdício de água e novos sistemas de alerta e legislação. Apesar da 
viabilidade dessas ideias, elas não seriam suficientes sem uma última 
medida: a humanidade deveria tomar o caminho do vegetarianismo. Quem 
come um pedaço de bife no almoço e outro no jantar passaria a ter 
direito a meio bife por dia. Mas será que isso é realmente necessário? 
Será que é viável?
	Quanto à necessidade de medidas rápidas, não restam dúvidas. "O acesso à
 água já é um problema para um bilhão de pessoas. E com o aquecimento 
global isso tende a piorar, já que ele vai alterar os padrões de chuva e
 aumentar os eventos climáticos extremos", diz Jan Lundqvist, cientista 
do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e um dos pesquisadores 
presentes no encontro (veja a entrevista completa). Segundo
 o pesquisador, a quantidade de água disponível no planeta não deve 
mudar muito no futuro. No entanto, a população vai crescer — seremos 9 
bilhões em 2050 — e os países mais pobres tendem a alcançar os padrões 
de consumo dos mais desenvolvidos. 
	Leia também:
	Falta d'água dobra risco de guerra civil, diz estudo
	Comida é água — No relatório produzido para a Semana 
Mundial da Água, a pesquisadora Malin Falkenmark, do Instituto 
Internacional da Água de Estocolmo, calculou a quantidade de comida 
necessária para alimentar toda a população do planeta em 2050. Ela 
estimou que, mantidos os padrões de dieta atuais, que registram o 
consumo de 3.000 calorias por dia, sendo 20% delas vindas da carne, não 
haverá comida para todos. Segundo seus cálculos, esse consumo diário de 
calorias só será viável se a quantidade de carne for reduzida para 5%.
	A estimativa se apoia na idea de que grande parte dos pastos do mundo é
 usada para produzir comida para bois, porcos e galinhas. Ou seja, esses
 animais criados para abate são grandes consumidores de recursos 
hídricos. Segundo a Water Footprint Network, uma organização que reúne 
pesquisas sobre o consumo hídrico de diversos produtos, cada quilo de 
carne bovina precisa de 15.415 litros de água para ser produzida. Porcos
 e frangos gastam um pouco menos, consumindo respectivamente 6.000 e 
4.300 litros por quilo. Já o alface consome 240 litros por quilo, o 
tomate, 214, e a batata, 290.
	Uma pesquisa publicada pelo Instituto de Educação da Água, da Unesco, 
em 2002, mostrou que, de toda água que é usada para produzir comida, 
29,6% vai para a carne, 23,8% para os cereais e 4,4% para legumes. No 
entanto, somente 15,3% do consumo humano de proteínas vem da carne, 
enquanto 19,2% vem dos legumes e 48,2% dos cereais. É por isso que, do 
ponto de vista do consumo de água, faria sentido abolir os churrascos.
	Carnívoros desde criança — A relação dos homens com a 
carne é muito antiga e está registrada nas paredes das cavernas – as 
pinturas rupestres são provas da importância dada aos animais pelos 
nossos ancestrais. "Sociedades que não consomem carne são extremamente 
raras. Antes mesmo da domesticação, a consumíamos por meio da caça", diz
 Rui Murrieta, professor de antropologia evolutiva do Instituto de 
Biociências da Universidade de São Paulo. "Inclusive, a gordura da carne
 pode estar relacionada ao crescimento do cérebro humano, e isso  ajudou
 no desenvolvimento de nossa espécie." 
	Atualmente, porém, graças aos conhecimentos sobre nutrição, é possível 
encontrar substitutos para as substâncias presentes na carne. "O 
problema da dieta vegetariana é que ela é muito mais complexa. A 
quantidade de alimentos que serão misturados no prato tem de ser maior, 
para garantir a presença de todos os nutrientes", diz Murrieta.
	Os nutricionistas não recomendam que crianças em fase de crescimento 
sejam privadas dos nutrientes animais em nenhuma circunstância. Mesmo 
para adultos, uma dieta exclusivamente vegetariana traz riscos se não 
for bem planejada. A vitamina B12, por exemplo, é de origem animal e não
 está presente em nenhum vegetal. E ela é essencial para a formação do 
sangue e o funcionamento do sistema nervoso. "Quem só se alimentar de 
vegetais terá que tomar suplementos da vitamina periodicamente para 
suprir a carência alimentar", diz Sonia Trecco, nutricionista do 
Hospital das Clínicas.
	Os vegetais também apresentam ferro em menor quantidade e qualidade que
 a carne. "O ferro que vem dos animais tem um melhor aproveitamento pelo
 organismo", diz Eneida Ramos, nutricionista do Hospital Albert Einstein
 e colunista do site de VEJA. Sem o seu consumo regular, podem aparecer 
anemia, quedas de cabelo, fraquezas e aumento na quantidade de 
infecções.
	Para driblar esses problemas, o conhecimento é essencial. "As pessoas 
têm de ser orientadas caso queiram reduzir o consumo de carne. O ferro 
pode ser substituído por um aumento no consumo de ovo, feijão, soja e 
vegetais folhosos escuros, como couve, agrião e rúcula", diz Sonia 
Trecco. Com uma orientação nutricional adequada, seria possível, em 
tese, abrir mão do bifinho diário.
	Cortando na carne – Alguns especialistas dizem, no 
entanto, que o corte na quantidade de carne consumida pode não ser 
necessário na quantidade calculada pelos pesquisadores. "O ano de 2050 
está muito distante para fazer previsões tão exatas. Existem muitos 
fatores diferentes. Ao mesmo tempo em que destruímos nascentes e 
expandimos as áreas urbanas, estamos começando a nos preocupar com a 
sustentabilidade, a planejar o uso e ocupação do solo", diz Sâmia 
Tauk-Tornisielo, pesquisadora do Centro de Estudos Ambientais da 
Universidade Estadual Paulista (UNESP). 
	Ainda assim, ela acredita que, em algum momento, será necessário 
diminuir a quantidade de carne consumida, mesmo que não passemos para 
uma dieta exclusivamente vegetariana. Segundo o professor Rui Murrieta, 
se esse momento chegar, ele será dolorido. "Sabemos que as sociedades 
nunca estão prontas para mudanças em sua culinária. Mas nossa vontade de
 sobreviver tem que ser maior que o amor a determinados pratos." 
	
	
		"Se seguirmos a tendência atual, teremos um futuro dramático e desagradável"
		Jan Lundqvist
		Pesquisador do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e autor de
 um dos estudos publicados no relatório da Semana Mundial da Água
	
		Porque os senhores acham que vai faltar água no futuro?
 A quantidade de água no planeta será a mesma por um bom tempo. Mas o 
número de pessoas está crescendo. Com a melhora no nível de vida, o 
consumo de comidas que consomem muita água, como a carne, só tende a 
aumentar. Além disso, o acesso à água já é um problema para um bilhão de
 pessoas. E com o aquecimento global isso tende a piorar, já que ele vai
 alterar os padrões de chuva e aumentar os eventos climáticos extremos. O
 risco de grandes tempestades ou secas são significativos para os 
fazendeiros. As colheitas vão variar a cada ano.
		O que é possível fazer para evitar isso? É essencial 
que busquemos a eficiência no uso da água. Temos que garantir uma 
colheita maior a cada gota usada. Além disso, temos que reduzir as 
perdas e desperdícios de comida que acontecem desde o campo até a mesa –
 não é nada responsável permitir que um terço do que é produzido vá pelo
 ralo. Por fim, temos que incentivar uma dieta balanceada e em harmonia 
com os recursos naturais. Tanto a natureza quanto nosso corpo sofrem as 
consequências da alimentação inadequada.
		O que o senhor pensa sobre o estudo publicado no relatório da 
Semana Mundial da Água que afirma que devemos reduzir nosso consumo de 
carne? Temos que ser cuidadosos nisso. Quando falamos sobre o 
consumo de carne, não necessariamente estamos falando da quantidade de 
carne ingerida. Podemos estar falando na quantidade produzida. Diminuir 
as perdas na cadeia de produção, nos depósitos e restaurantes  pode 
fazer com que a quantidade de carne a ser cortada da alimentação seja 
menor. Além disso, a carne é produzida de modo diferente em vários 
lugares do mundo, e será afetada de modo diferente também. A produção 
dos vegetais que alimentam os animais é diferente se a colheita é regada
 pelas chuvas ou irrigada. Há várias áreas no mundo onde a criação de 
animais é possível, mas a produção outros produtos agrícolas não é. 
		Quais podem ser as consequências de não mudar nossos hábitos?
 Se seguirmos a tendência atual, teremos um futuro dramático e 
desagradável. Seguindo esse caminho, a competição pela água pode 
aumentar, intensificando conflitos e afetando um grande número de 
pessoas. Ninguém quer esse tipo de futuro. Mas poucas coisas não são 
estáticas no mundo. As pessoas mudam, os negócios, as lideranças 
políticas e nosso conhecimento mudam. A tecnologia pode nos ajudar a 
reduzir essas ameaças, mas também pode torná-las piores. No final das 
contas, tudo depende da vontade humana.
		No Brasil, nós temos muitas reservas de água. Devemos nos preocupar com essa questão?
 Nós vivemos em um mundo globalizado e dividimos o mesmo futuro. As 
mudanças climáticas — ou mudanças na água — vão nos afetar a todos, de 
vários jeitos. Do mesmo modo, nossas ações conjuntas também podem afetar
 o clima.
FONTE: Revista Veja/Ciência