Ciência
15/09/2012 - 19:34
Aquecimento global
O vegetarianismo pode salvar o mundo?
Cientistas propõem que três quartos do consumo atual de carne sejam cortados para que todos tenham o que comer no futuro. Mas será que a humanidade pode abrir mão da carne?
Guilherme Rosa
Dê adeus a esta cena: pesquisadores dizem que a criação de animais consome água demais
(Thinkstock)
Há três semanas, pesquisadores de todo o mundo se reuniram em
Estocolmo, na Suécia, para participar da Semana Mundial da Água. Ali, em
meio a discussões sobre o futuro do planeta, chegaram a conclusões
alarmantes: até 2050, não haverá água para todos. Com a seca, teremos
crises de desnutrição e fome, que podem levar a disputas violentas pelas
últimas terras férteis do mundo. Mas nem todas as previsões foram
catastróficas. Os cientistas também esboçaram soluções que poderiam
prevenir esse cenário e garantir a cada um sua parcela justa de água e
comida.
Entre as saídas apresentadas estavam a irrigação mais eficiente, menor
desperdício de água e novos sistemas de alerta e legislação. Apesar da
viabilidade dessas ideias, elas não seriam suficientes sem uma última
medida: a humanidade deveria tomar o caminho do vegetarianismo. Quem
come um pedaço de bife no almoço e outro no jantar passaria a ter
direito a meio bife por dia. Mas será que isso é realmente necessário?
Será que é viável?
Quanto à necessidade de medidas rápidas, não restam dúvidas. "O acesso à
água já é um problema para um bilhão de pessoas. E com o aquecimento
global isso tende a piorar, já que ele vai alterar os padrões de chuva e
aumentar os eventos climáticos extremos", diz Jan Lundqvist, cientista
do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e um dos pesquisadores
presentes no encontro (veja a entrevista completa). Segundo
o pesquisador, a quantidade de água disponível no planeta não deve
mudar muito no futuro. No entanto, a população vai crescer — seremos 9
bilhões em 2050 — e os países mais pobres tendem a alcançar os padrões
de consumo dos mais desenvolvidos.
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Comida é água — No relatório produzido para a Semana
Mundial da Água, a pesquisadora Malin Falkenmark, do Instituto
Internacional da Água de Estocolmo, calculou a quantidade de comida
necessária para alimentar toda a população do planeta em 2050. Ela
estimou que, mantidos os padrões de dieta atuais, que registram o
consumo de 3.000 calorias por dia, sendo 20% delas vindas da carne, não
haverá comida para todos. Segundo seus cálculos, esse consumo diário de
calorias só será viável se a quantidade de carne for reduzida para 5%.
A estimativa se apoia na idea de que grande parte dos pastos do mundo é
usada para produzir comida para bois, porcos e galinhas. Ou seja, esses
animais criados para abate são grandes consumidores de recursos
hídricos. Segundo a Water Footprint Network, uma organização que reúne
pesquisas sobre o consumo hídrico de diversos produtos, cada quilo de
carne bovina precisa de 15.415 litros de água para ser produzida. Porcos
e frangos gastam um pouco menos, consumindo respectivamente 6.000 e
4.300 litros por quilo. Já o alface consome 240 litros por quilo, o
tomate, 214, e a batata, 290.
Uma pesquisa publicada pelo Instituto de Educação da Água, da Unesco,
em 2002, mostrou que, de toda água que é usada para produzir comida,
29,6% vai para a carne, 23,8% para os cereais e 4,4% para legumes. No
entanto, somente 15,3% do consumo humano de proteínas vem da carne,
enquanto 19,2% vem dos legumes e 48,2% dos cereais. É por isso que, do
ponto de vista do consumo de água, faria sentido abolir os churrascos.
Carnívoros desde criança — A relação dos homens com a
carne é muito antiga e está registrada nas paredes das cavernas – as
pinturas rupestres são provas da importância dada aos animais pelos
nossos ancestrais. "Sociedades que não consomem carne são extremamente
raras. Antes mesmo da domesticação, a consumíamos por meio da caça", diz
Rui Murrieta, professor de antropologia evolutiva do Instituto de
Biociências da Universidade de São Paulo. "Inclusive, a gordura da carne
pode estar relacionada ao crescimento do cérebro humano, e isso ajudou
no desenvolvimento de nossa espécie."
Atualmente, porém, graças aos conhecimentos sobre nutrição, é possível
encontrar substitutos para as substâncias presentes na carne. "O
problema da dieta vegetariana é que ela é muito mais complexa. A
quantidade de alimentos que serão misturados no prato tem de ser maior,
para garantir a presença de todos os nutrientes", diz Murrieta.
Os nutricionistas não recomendam que crianças em fase de crescimento
sejam privadas dos nutrientes animais em nenhuma circunstância. Mesmo
para adultos, uma dieta exclusivamente vegetariana traz riscos se não
for bem planejada. A vitamina B12, por exemplo, é de origem animal e não
está presente em nenhum vegetal. E ela é essencial para a formação do
sangue e o funcionamento do sistema nervoso. "Quem só se alimentar de
vegetais terá que tomar suplementos da vitamina periodicamente para
suprir a carência alimentar", diz Sonia Trecco, nutricionista do
Hospital das Clínicas.
Os vegetais também apresentam ferro em menor quantidade e qualidade que
a carne. "O ferro que vem dos animais tem um melhor aproveitamento pelo
organismo", diz Eneida Ramos, nutricionista do Hospital Albert Einstein
e colunista do site de VEJA. Sem o seu consumo regular, podem aparecer
anemia, quedas de cabelo, fraquezas e aumento na quantidade de
infecções.
Para driblar esses problemas, o conhecimento é essencial. "As pessoas
têm de ser orientadas caso queiram reduzir o consumo de carne. O ferro
pode ser substituído por um aumento no consumo de ovo, feijão, soja e
vegetais folhosos escuros, como couve, agrião e rúcula", diz Sonia
Trecco. Com uma orientação nutricional adequada, seria possível, em
tese, abrir mão do bifinho diário.
Cortando na carne – Alguns especialistas dizem, no
entanto, que o corte na quantidade de carne consumida pode não ser
necessário na quantidade calculada pelos pesquisadores. "O ano de 2050
está muito distante para fazer previsões tão exatas. Existem muitos
fatores diferentes. Ao mesmo tempo em que destruímos nascentes e
expandimos as áreas urbanas, estamos começando a nos preocupar com a
sustentabilidade, a planejar o uso e ocupação do solo", diz Sâmia
Tauk-Tornisielo, pesquisadora do Centro de Estudos Ambientais da
Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Ainda assim, ela acredita que, em algum momento, será necessário
diminuir a quantidade de carne consumida, mesmo que não passemos para
uma dieta exclusivamente vegetariana. Segundo o professor Rui Murrieta,
se esse momento chegar, ele será dolorido. "Sabemos que as sociedades
nunca estão prontas para mudanças em sua culinária. Mas nossa vontade de
sobreviver tem que ser maior que o amor a determinados pratos."
"Se seguirmos a tendência atual, teremos um futuro dramático e desagradável"
Jan Lundqvist
Pesquisador do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e autor de um dos estudos publicados no relatório da Semana Mundial da Água
Pesquisador do Instituto Internacional da Água de Estocolmo e autor de um dos estudos publicados no relatório da Semana Mundial da Água
Porque os senhores acham que vai faltar água no futuro?
A quantidade de água no planeta será a mesma por um bom tempo. Mas o
número de pessoas está crescendo. Com a melhora no nível de vida, o
consumo de comidas que consomem muita água, como a carne, só tende a
aumentar. Além disso, o acesso à água já é um problema para um bilhão de
pessoas. E com o aquecimento global isso tende a piorar, já que ele vai
alterar os padrões de chuva e aumentar os eventos climáticos extremos. O
risco de grandes tempestades ou secas são significativos para os
fazendeiros. As colheitas vão variar a cada ano.
O que é possível fazer para evitar isso? É essencial
que busquemos a eficiência no uso da água. Temos que garantir uma
colheita maior a cada gota usada. Além disso, temos que reduzir as
perdas e desperdícios de comida que acontecem desde o campo até a mesa –
não é nada responsável permitir que um terço do que é produzido vá pelo
ralo. Por fim, temos que incentivar uma dieta balanceada e em harmonia
com os recursos naturais. Tanto a natureza quanto nosso corpo sofrem as
consequências da alimentação inadequada.
O que o senhor pensa sobre o estudo publicado no relatório da
Semana Mundial da Água que afirma que devemos reduzir nosso consumo de
carne? Temos que ser cuidadosos nisso. Quando falamos sobre o
consumo de carne, não necessariamente estamos falando da quantidade de
carne ingerida. Podemos estar falando na quantidade produzida. Diminuir
as perdas na cadeia de produção, nos depósitos e restaurantes pode
fazer com que a quantidade de carne a ser cortada da alimentação seja
menor. Além disso, a carne é produzida de modo diferente em vários
lugares do mundo, e será afetada de modo diferente também. A produção
dos vegetais que alimentam os animais é diferente se a colheita é regada
pelas chuvas ou irrigada. Há várias áreas no mundo onde a criação de
animais é possível, mas a produção outros produtos agrícolas não é.
Quais podem ser as consequências de não mudar nossos hábitos?
Se seguirmos a tendência atual, teremos um futuro dramático e
desagradável. Seguindo esse caminho, a competição pela água pode
aumentar, intensificando conflitos e afetando um grande número de
pessoas. Ninguém quer esse tipo de futuro. Mas poucas coisas não são
estáticas no mundo. As pessoas mudam, os negócios, as lideranças
políticas e nosso conhecimento mudam. A tecnologia pode nos ajudar a
reduzir essas ameaças, mas também pode torná-las piores. No final das
contas, tudo depende da vontade humana.
No Brasil, nós temos muitas reservas de água. Devemos nos preocupar com essa questão?
Nós vivemos em um mundo globalizado e dividimos o mesmo futuro. As
mudanças climáticas — ou mudanças na água — vão nos afetar a todos, de
vários jeitos. Do mesmo modo, nossas ações conjuntas também podem afetar
o clima.
FONTE: Revista Veja/Ciência
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