Evolução
Ilha do medo
Não há mamíferos nem fontes de água potável na Queimada Grande. Quem sobrevive nessa ilha paulista são milhares de cobras e aranhas venenosas. E a evolução se encarrega do resto
A precariedade de nossas instalações acaba servindo para uma aula de história. Segundo Damasceno, em pleno século 21, somos meros amadores se comparados aos cientistas pioneiros que visitaram a ilha, como João Florêncio Gomes, do Butantan, que, já em 1919, levou exemplares da jararaca ao instituto, em São Paulo. As primeiras e bem aparelhadas expedições começaram depois de relatos de moradores da ilha - funcionários da Marinha que cuidavam do farol, instalado em 1909 (automatizado na década de 1940, o equipamento dispensa até hoje a presença de pessoas em tempo integral). "Para cúmulo de infelicidade, os moradores [faroleiros da Queimada Grande] de vez em quando se veem privados até das próprias galinhas, que criam para sua subsistência, pois que, sendo lá o ‘paraíso das cobras’, esses pobres animais são frequentemente dizimados", escreveu o sucessor de Gomes, Afrânio do Amaral, em 1921.
A quantidade assombrosa de serpentes atraiu outros cientistas, como o belga Alphonse Richard Hoge, a partir da metade da década de 1960, Pedro Antônio Federsoni Júnior, nos anos 1980, e Otávio Marques, dos anos 1990 até hoje. "A Queimada Grande é um sonho para qualquer herpetólogo", diz Aníbal Megarejo, ao qual Damasceno e Rosa acompanharam em sua primeira expedição à ilha, no fim de 2010. "Na Mata Atlântica existe grande biodiversidade de serpentes, mas sempre com densidade populacional pequena. Há esconderijos, e é difícil de localizá-las."
Na Queimada Grande, não. Na noite anterior à nossa partida, contabilizamos 48 encontros com jararacas-ilhoas em três dias de saídas. Eu e João estamos na cozinha, depois de falar com as famílias ao telefone - o isolamento não é o bastante para afetar o alcance do sinal de celular -, quando ouvimos os gritos de Damasceno, em cima da mesma rocha de onde João acabou de descer. "Tem uma cobra bem no lugar em que você estava sentado!" Entreolhamos-nos, atônitos. Até então, sabia-se que a espécie não fica em lugares com muito vento, como era o caso do acampamento, e que ela é ativa apenas durante o dia. A ilha nos surpreendia de novo.
Na manhã seguinte, o mar está calmo como uma piscina. Todo o equipamento e as roupas foram embarcados na lancha que veio nos resgatar, e o pessoal da expedição saiu para uma missão final: instalar mais uma câmera-armadilha na mata. Dou-me o direito de não ver mais cobras pelos próximos meses e fico de bobeira, enfim relaxado, olhando para o mar - aonde as jararacas não chegam! Então me dou conta de que avisto uma mulher pela primeira vez em mais de 72 horas. Ela pula do barco com graça e acena para mim. É uma miragem? Jogo-me na água de calça, tênis e camiseta. Chego ao encontro dela em minutos, e sou recebido com uma máscara de mergulho. "Dá uma olhada lá embaixo", diz ela.
Assim que desço abaixo da superfície, avisto duas enormes arraias-pintadas e uma infinidade de peixes menores e águas-vivas. Um mundo novo, belo e sereno, que contrasta com a tensão da vida em terra na Queimada Grande.
Os momentos no mar aliviam o cansaço e a ansiedade. Se dias antes eu chegara fraco e amedrontado, hoje me sinto resistente e corajoso. Minha estadia na ilha faz sentido. Presenciei um momento-chave para uma criatura que se adaptou a condições desfavoráveis. E que, agora, vê seu destino em uma encruzilhada: a jararaca-ilhoa pode se readaptar ou deixar de existir. Conservar o seu lar, a ilha da Queimada Grande, não é questão de salvar uma espécie, mas de manter vivo um grande laboratório, que nos ensina, todos os dias, a importância de evoluir.
FONTE: Revista Planeta Sustentável
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