Por Mariana Tavares e Ricardo Arnt
Não foi apenas uma peça de roupa que dois imigrantes europeus
criaram nos Estados Unidos, em 1873, ao inventar a calça de denim azul
reforçada com rebites metálicos. Sem saber, o alemão Levi Strauss e o
alfaiate letão Jacob David deram forma a um estilo de vida. Criada para
atender à demanda de mineradores por vestimentas resistentes, a calça
jeans caiu nas graças do imaginário western nos anos 1930,
tornando-se uma representação de valores como masculinidade e
independência. Vieram então os anos 1950, com James Dean, Marlon Brando e
a rebeldia juvenil, e o jeans se consolidou como ícone da vida
espontânea e confortável. Não deixa de ser irônico: um tecido de 138
anos continua firme como símbolo máximo de juventude.
James Dean, confortável no filme Assim caminha a humanidade, em 1956. |
A calça jeans virou uma commodity global. Tornou-se a
peça mais popular da história da moda por um motivo simples: não há nada
mais democrático. Serve ao caminhoneiro e à socialite. "É um produto
com grande dinâmica de uso, que atende a todas as idades e está
disponível tanto em butiques como em supermercados", afirma Fernando
Pimentel, diretorsuperintendente da Associação Brasileira da Indústria
Têxtil e de Confecção (Abit). Segundo a instituição, somente no Brasil,
em 2009, foram confeccionados 226,7 milhões de calças jeans.
Juntos, China, Brasil, Turquia e Índia, os quatro maiores
produtores de denim no mundo, têm capacidade de produção de 3,4 bilhões
de metros lineares de tecido por ano, o que significa cerca de 1,5
bilhão de calças. Ao contrário do Brasil, que, além de importante polo
produtor, é também um dos maiores consumidores mundiais de denim, China,
Turquia e Índia atuam principalmente como centros de terceirização da
produção de marcas norteamericanas e europeias.
O que poucos sabem é que esse objeto de desejo global tem um
custo alto para o ambiente. O denim é feito majoritariamente de algodão,
cultura que recebe 25% dos agrotóxicos consumidos no mundo, segundo o
Instituto Ecotece, organização paulista dedicada ao "vestir consciente".
O índigo, corante natural responsável pelo famoso tom azulado, há muito
perdeu lugar para o anil sintético e outros corantes derivados do
petróleo. Para dar à calça o aspecto desgastado, são usadas substâncias
químicas como amônia e soda cáustica, que, além de prejudiciais à saúde,
são altamente poluentes. Somam-se a isso enormes volumes de água e de
energia gastos e toneladas de CO2 (gás carbônico) emitidas ao longo do
ciclo de vida do produto. A velha calça desbotada não é amiga da
natureza.
Basta imaginar que, se todos os jeans produzidos no mundo fossem
calças Levis 501 de tom médio, o 1,5 bilhão de jeans confeccionados
anualmente consumiria 5,2 trilhões de litros d'água - nada menos do que o
equivalente a 11 horas ininterruptas da vazão média do Rio Amazonas no
mar (133.000 m3/segundo), de acordo com a Agência Nacional de Águas. É
água!
Em
Toritama, Pernambuco, as águas do Rio Capibaribe chegaram a mudar de
cor com o despejo das lavagens de jeans. Mas, em 2005, o Ministério
Público regularizou 56 lavanderias na cidade. Hoje, toda a água é
reciclada e tratada, antes de ser lançada no rio.
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Fábrica de jeans em Toritama: emprego duro, porém firme.
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Azul índigo
No Brasil, os principais polos de produção se concentram nos
Estados de Pernambuco e São Paulo, com destaque também para o Paraná e
Santa Catarina. Sozinha, Toritama, cidade pernambucana 100 quilômetros a
oeste do Recife, integrante do chamado Polo do Agreste, dispõe de 2.500
fábricas e responde por 16% da produção nacional. Toritama é um bom
exemplo do impacto da transformação de uma cidade em polo da indústria
têxtil. Hoje batizado "capital do jeans", o município viu sua população
crescer 63,4% em dez anos, passando de 21.800 habitantes em 2000 para
35.631 em 2010 - nada menos do que o maior aumento populacional do País
no período! O grande atrativo, claro, é o emprego. A indústria do jeans
emprega boa parte da população local e 35 mil pessoas de municípios
vizinhos.
Além do aumento da população e do consequente crescimento físico
da cidade, o jeans alterou a cor do Rio Capibaribe. Até 2005, era comum
que as lavanderias fizessem o descarte de efluentes sem nenhum tipo de
tratamento na rede fluvial de Toritama. Também era recorrente o uso de
lenha irregular, vinda de madeira nativa, como combustível para as
caldeiras. A cidade estava a caminho de se tornar uma nova Tehuacán, o
principal centro produtor de jeans do México.
Acima, à esquerda, o processo de tinturaria de jeans em Sorocaba (SP). À direita, lavanderias em fábrica em Macatuba (SP). |
Em Tehuacán, durante anos as lavanderias que atendiam marcas
mexicanas e norteamericanas, inclusive gigantes como Levi's e Gap,
despejaram efluentes ricos em corantes e detergentes no rio que irriga
as plantações de milho da cidade. Em 2007, a poluição gerou uma crise de
contaminação de alimentos com repercussão nacional e internacional.
Pressionadas, as grandes marcas passaram a exigir a adoção de estações
de tratamento de efluentes (ETEs) pelas lavanderias, sob risco de
cancelarem a prestação de serviço.
Na verdade, o problema acabou sendo transferido. Boa parte das
empresas que operavam no México mudou-se para a China e a Índia. Das 25
principais lavanderias que atuavam em Tehuacán em 2003, só oito
continuavam em atividade em 2010. Para o Greenpeace, o impacto só mudou
de domicílio. Em Xintang, cidade chinesa que produz 260 milhões de pares
de jeans por ano, 17 das 21 amostras de água testadas pela organização
ambientalista apontaram presença de cinco tipos de metais pesados. Em
uma delas, o índice de cádmio excedeu em 128 vezes os limites nacionais
chineses.
Para preservar Toritama do mesmo destino, desde 2001 o Ministério
Público de Pernambuco vem promovendo a conscientização e a adequação
das lavanderias à legislação ambiental, processo que se estendeu a
outros municípios da região, como Santa Cruz do Capibaribe e Caruaru.
Foram firmados Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) que previam multas
e o fechamento das empresas que não se adequassem. A partir de 2005,
todas as 56 lavanderias da cidade foram ambientalmente regularizadas.
Todo ano o consumo de jeans aumenta na China. Em 2008, cresceu 18,8% em relação a 2007. |
Kleber Barbosa, gerente-executivo da Associação Comercial e
Industrial de Toritama, considera que a construção de ETEs em cada
lavanderia é imperativa para a empresa receber alvará de funcionamento.
Cada estação custa pelo menos R$ 50 mil. Sérgio Souto, promotor de
Justiça envolvido na operação, considera o valor um investimento. "O
custo é baixo e, como envolve o reaproveitamento de 50% da água usada, é
possível até gerar lucro", argumenta. O volume de água em questão é
considerável: são utilizados cerca de 120 litros para a lavagem e
beneficiamento de um único par de jeans.
No que se refere ao gerenciamento dos impactos ambientais, a
indústria de denim brasileira é um exemplo a ser seguido, acredita o
diretor da Abit, Fernando Pimentel. O objetivo agora é garantir que essa
preocupação se torne uma vantagem no mercado mundial, não um obstáculo.
"Não temos como concorrer em preço com países que não possuem o mesmo
rigor da lei ambiental do Brasil, como a China Esse desequilíbrio está
na pauta das discussões comerciais", ressalta.
Jeans verde
Além das lavanderias, as empresas brasileiras produtoras de denim
também têm investido em pesquisas, não só para otimizar a produção, mas
também para inovar em tecidos e acabamentos. Desde 2001, a Vicunha, uma
das maiores fabricantes mundiais de denim, utiliza casca de
castanha-de-caju para gerar energia térmica e vapor para o aquecimento
das caldeiras das duas fábricas que possui no Ceará. Segundo a
companhia, é utilizada por mês uma média de 2,3 mil toneladas do
material, o que representa uma economia de 50% em relação ao combustível
fóssil e evita a emissão de cerca de 10 mil toneladas de CO2 na atmosfera.
Fábrica de jeans em operação em Tehuacán, no México. Muitos empregos mexicanos foram perdidos com a transferência das fábricas para a Índia e a China. |
Na Tavex, dona da marca Santista, cerca de 30% da água consumida é
reutilizada, o que se mostrou muito bom para os negócios. "Obtemos uma
redução de mais de R$ 5 milhões por ano em custos operacionais", explica
Maria José Orione, gerente de marketing. A Tavex investe também em
acabamentos biodegradáveis, como o Bio Denim, produzido com algodão
reciclado, e o Alsoft Amazontex, desenvolvido a partir da manteiga de
cupuaçu em substituição aos amaciantes sintéticos.
O algodão do cerrado é um dos insumos da indústria global de jeans. O Estado do Mato Grosso é o maior produtor brasileiro. |
Há várias inovações sendo testadas. A carioca Tristar trouxe da
Alemanha uma tecnologia que dispensa a água na lavagem do jeans. Basta
colocar a peça em uma sacola e deixá-la no freezer por 12 a 24 horas,
para que o processo de congelamento elimine as bactérias. Na paulista
Eden, os jeans são tingidos com corantes naturais, como urucum e anil.
Para obter efeitos e texturas no tecido, são utilizados lixas e até
mesmo açúcar, que desgasta e clareia a peça. Ou seja, há muitas
inovações capazes de reduzir os impactos ambientais da indústria.
Nos Estados Unidos, as opções de calças jeans "ecológicas" são
cada vez mais comuns entre consumidores exigentes. Ou eram, até a crise
econômica de 2008 abalar os investimentos. Marcas consideradas como
referências nesse mercado, principalmente em função do uso de algodão
orgânico, como a Del Forte e a Loomstate, tiveram de abandonar o jeans
verde porque o público voltou-se para produtos mais baratos. Com uma
escala restrita de mercado, os produtos mais sofisticados tornam-se mais
vulneráveis às crises. A sustentabilidade, sem dúvida, custa mais caro.
Fonte: A Product Life Cycle Approach to Sustainability, Levi Strauss & Co., 2011. |
Caso diferente é o da gigante Levi's, empresa atuante em mais de
110 países. Metade da receita líquida provém de fora dos Estados Unidos.
Sua vasta cadeia de negócios mostra que o jeans é uma commodity
global: ao longo do ciclo de vida, o produto passa por países tão
diversos quanto Brasil (fornecedor de algodão), Haiti (costura), Egito
(acabamento), Japão e Rússia (mercados consumidores).
Entusiasta da sustentabilidade, a Levi's investe firme na redução
da sua pegada ambiental, agregando valor à marca. "Estamos
comprometidos com a obtenção de neutralidade de carbono e com a mudança
para o uso de energias 100% renováveis em nossas operações e cadeia de
fornecimento", diz Mauricio Busin, diretor de marketing para a América
Latina da empresa. Segundo ele, a crise econômica não afetou este
esforço. A nova linha Water< Less, por exemplo, utiliza de 28% a 98%
menos água, de acordo com o modelo, o que, para a linha outono-inverno
2011, resultará na economia de cerca de 16 milhões de litros d'água.
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