Os
primeiros povoadores do Cerrado
Pedro
Ignácio Schmitz
O primeiro
povoamento do território brasileiro, depois de anos de pesquisa
e divulgação, continua assunto não esgotado.
As perguntas que sempre voltam: por quem, quando e como foi feito?
Durante
anos foram destaque na mídia as datas de 50.000 anos para
achados de São Raimundo Nonato, no sertão do Piauí.
Mais recentemente foi o caso da Luzia, a jovem mulher de 10.500
anos atrás, cujo corpo foi abandonado na beira de pequeno
lago, em Lagoa Santa, Minas Gerais.
Hoje
há consenso de que o território brasileiro se encontra
povoado desde 9.000 anos a.C., com achados consistentes na Amazônia,
no Nordeste, no Planalto Central e nas terras temperadas do Sul.
Continua a discussão sobre a biologia e as feições
do rosto dessa população. Se a primeira migração
vinda da Ásia tinha feições negróides,
como a Luzia de Lagoa Santa, como explicar que os indígenas
dos milênios posteriores e os atuais têm feições
mongolóides, sem resquícios daquela que seria a primeira
leva? Se aceitamos esta substituição de populações,
vem a pergunta de quando essa troca se teria dado. A hipótese
de trabalho é que teria sido ao redor de 7.000 a 6.500 anos
a.C., quando ocorreram fortes mudanças culturais no planalto
brasileiro.
Outra
discussão importante refere-se ao modo de vida dos pioneiros.
Em nossa cultura erudita estão fortemente arraigados conceitos
que se criaram no estudo dos primeiros caçadores norte-americanos,
que são apresentados como pequenos bandos nômades,
que teriam vagado sem rumo pelo território, caçando
animais gregários, com o uso de dardos ou lanças munidas
de grandes pontas de pedra, primorosamente talhadas. O modelo é
claramente formado sobre populações de estepes frias
com manadas de grandes animais, alguns ainda sobreviventes do último
período glacial, a cujas migrações estacionais
o homem se teria adaptado para sobreviver.
Mas
este não é o ambiente, a que chegaram os primeiros
povoadores do planalto, quente e coberto por savana tropical. Pesquisas
feitas nesse ambiente, nos últimos trinta anos, no Pará,
no Piauí, em Pernambuco, na Bahia, em Minas Gerais, em Goiás,
no Tocantins, no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul fornecem numerosos
dados para visualizar esse modo de vida nos trópicos.
(Clique
para ver a imagem ampliada)
Sítios arqueológicos antigos nas savanas tropicais: 1. Alto Sucuriú, MS; 2. Serranópolis, 3. Rio do Peixe; 4. Caiapônia, 5. Uruaçu, 6. formadores do rio Tocantins, GO; 7. Rio Paraná, 8. UHE Serra da Mesa, TO; 9. Serra do Cipó, 10. Varzelândia, 11. Vale do Peruaçu, MG; 12. Serra Geral, BA; 13. Itaparica, 14. Bom Jardim, PE; 15. Rio Açu, 16. Litoral, RN; 17. São Raimundo Nonato, PI.
Sítios arqueológicos antigos nas savanas tropicais: 1. Alto Sucuriú, MS; 2. Serranópolis, 3. Rio do Peixe; 4. Caiapônia, 5. Uruaçu, 6. formadores do rio Tocantins, GO; 7. Rio Paraná, 8. UHE Serra da Mesa, TO; 9. Serra do Cipó, 10. Varzelândia, 11. Vale do Peruaçu, MG; 12. Serra Geral, BA; 13. Itaparica, 14. Bom Jardim, PE; 15. Rio Açu, 16. Litoral, RN; 17. São Raimundo Nonato, PI.
Um
lugar privilegiado para abordar o assunto é o município
de Serranópolis, no sudoeste de Goiás, onde a Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo, RS), junto com a
Universidade Católica de Goiás (Goiânia, GO)
estudaram um conjunto de aproximadamente 40 abrigos rochosos, grandes,
ensolarados e limpos, com uma ocupação indígena
densa e persistente, que vai de 9.000 anos a.C. até a fixação
no lugar de fazendeiros brancos, no século dezoito de nossa
era.
Nas
espessas camadas sobrepostas desses abrigos rochosos estão
bem conservados os testemunhos da ocupação milenar.
São camadas densas de cinzas, carvão, restos alimentares
originários da caça animal e da coleta vegetal, milhares
de instrumentos lascados em pedra e seus refugos de produção,
além das sepulturas dos moradores falecidos. As paredes dos
abrigos estão cobertas por pinturas e gravuras, que não
só identificavam os espaços ocupados, mas também
os tornavam domésticos e habitáveis.
Um painel
de pinturas
Na
quase totalidade dos abrigos foram realizadas escavações
cientificamente controladas. Um número grande de datas
de C-14 sinalizam a mudança do tempo, do clima e da cultura
registrados nas camadas.
A partir
delas pode-se dividir a ocupação em três períodos
bem distintos: o primeiro vai de 9.000 a 6.500 anos a.C. e se caracteriza
como de caça generalizada; o segundo, de 6.500 a.C. até
o começo de nossa era, continua sendo de caça generalizada,
com aumento de coleta de moluscos terrestres e da pesca; o terceiro,
a partir de 500 d.C. até a chegada do colonizador branco,
acrescenta à caça e à coleta, o cultivo de
plantas tropicais. Todos os sucessivos povoadores continuaram usando
como sua moradia os mesmos abrigos rochosos.
Aspectos
de uma escavação
O primeiro
período é o mais importante para nosso tema porque
mostra como se instalaram e como viveram os pioneiros no cerrado
do planalto central.
A primeira
constatação: eles ocupavam com bastante continuidade
e intensidade o conjunto de abrigos, contradizendo a expectativa
de que acampariam neles esporadicamente e a maior parte do tempo
vagariam pelo território sem ponto de amarração.
Certamente são populações compostas por poucas
famílias, mas elas têm um lugar bem identificado por
acidentes geográficos, pinturas e gravuras, no qual permanecem
por muito tempo e ao qual voltam como a sua referência. Em
outros lugares do planalto a permanência nos sítios
é menor, ou porque não existem grandes coberturas
rochosas que os abriguem, ou porque os recursos que buscam estão
mais distribuídos no espaço. Nesses lugares o conceito
de nomadismo parece mais aplicável.
Abrigo
maior da área de Serranópolis
A segunda
questão é a subsistência: nos abrigos de Serranópolis
os restos de alimentos de origem animal e vegetal, que formam o
lixo abandonado, são muito abundantes e bem conservados,
permitindo perfeita identificação. Apesar de os grandes
animais do tempo da última glaciação ainda
estarem vivos e existirem na região, não há
nenhum vestígio deles no lixo alimentar. O que existe são
restos de animais de tamanho médio e pequeno, como veados,
carnívoros variados, tatus, lagartos, tartarugas, cobras
de todos os tamanhos e muitos ratos; também muitas cascas
de ovos de ema. Ao lado dos muitos vestígios de fauna há
restos de frutas do cerrado e instrumentos para os esmagar ou moer.
Em outras áreas do planalto em que sítios arqueológicos
da mesma natureza e do mesmo tempo foram estudados, os resultados
são parecidos.
Os
artefatos em pedra também não correspondem ao modelo
norte-americano. Nas camadas há um número muito grande
de instrumentos de pedra lascada e dezenas de milhares de lascas,
fragmentos e núcleos resultantes da produção
local de instrumentos. Estes são bem acabados, muitas vezes
reciclados por causa de intenso uso, indicando, outra vez, estabilidade
local. Os instrumentos mais característicos são raspadores
em forma de quilha de barco, que os arqueólogos, por alguma
semelhança com peças européias, chamam "lesmas"
(limaces em francês). Seriam usadas para produzir os
instrumentos de madeira, que não se conservaram. Mas pontas
de dardos ou lanças, tão típicas no páleo-índio
americano, são muito raras e, além disso, extraordinariamente
rudimentares e ineficientes. Para apanhar os animais do cerrado
seriam de pouca utilidade.
Instrumentos
mais característicos do
primeiro período, as chamadas "lesmas"
primeiro período, as chamadas "lesmas"
Parece
claro que a população aqui estabelecida fez uma adaptação
à savana tropical, o cerrado e a caatinga, na qual existem
muitos frutos grandes e nutritivos, especialmente no período
das chuvas; e existem muitas espécies animais de tamanho
médio e pequeno, que moram e são permanentes no lugar,
sendo fáceis de apanhar em qualquer momento. Esta situação
é muito diferente da observada nas estepes de áreas
frias, nas quais existem manadas de grandes animais, que migram
de um lugar para o outro, nas diversas estações do
ano; estes rebanhos convidam o homem a migrar com eles e exigem
que ele use armas eficientes porque a caça é agressiva
e põe em risco a vida do caçador.
Em
Serranópolis existem grandes espaços cobertos, excelente
matéria-prima para fazer instrumentos de pedra e recursos
alimentares concentrados por causa da confluência de matas
densas, ricos cerrados e campos de altura, condições
que permitiram uma prematura sedentarização, que não
se observa da mesma forma em outras áreas do planalto.
Neste
primeiro período, talvez a população não
enterrasse os seus mortos, ao menos não os depositava nos
abrigos em que vivia; por isso sua biologia e feições
nos são desconhecidas.
Sepultamento
da transição do primeiro para o segundo período
A partir
de 6.500 anos a.C. nota-se uma mudança no clima e também
na cultura. A partir deste momento há numerosos sepultamentos
nos espaços ocupados, os instrumentos de pedra se tornam
muito simples, meras lascas usadas sem maiores modificações;
aumenta a pesca e a coleta de moluscos e diminuem os restos de frutos
do cerrado. Se continua a mesma população ou é
substituída por outra diferente não dá para
ver, por inexistirem esqueletos para comparar. Este seria o momento
em que uma população de feições negróides,
como a Luzia, seria substituída, de acordo com a hipótese,
por uma população mongolóide.
A partir
de 500 anos de nossa era os mesmos abrigos são ocupados por
outra população que continua caçando e apanhando
os frutos do cerrado, aos quais acrescenta o cultivo de plantas
tropicais, como o milho, a mandioca, o amendoim, as abóboras
e cabaças. E para seu uso fabrica pequenas panelas de barro
cozido.
O que
podemos concluir do exposto é que as populações
indígenas, que chegaram às savanas tropicais, se adaptaram
a elas e nelas criaram suas próprias culturas e seu próprio
modo de vida. Pensá-los dentro de um modelo norte-americano
ou europeu seria desconhecer a criatividade que está atrás
de cada cultura e subestimar a seriedade dos arqueólogos
brasileiros.
Pedro
Ignácio Schmitz é professor do Instituto Anchietano
de Pesquisas/UNISINOS.
FONTE: Com Ciência Arqueologia e Sítios Arqueológicos
Quer
saber mais?
- Schmitz, Pedro Ignácio, Sales Barbosa, Altair, Jacobus, André Luiz & Ribeiro, Maira Barberi. Arqueologia nos cerrados do Brasil Central. Serranópolis I. Pesquisas, Antropologia 44. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas, 1989, 208 páginas.
- Schmitz, Pedro Ignácio, SILVA, Fabíola Andréa & Beber, Marcus Vinicius. Arqueologia nos cerrados do Brasil Central. Serranópolis II. As pinturas e gravuras dos abrigos. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas/Unisinos, 1997, 65 páginas de texto mais 96 páginas de figuras.
- Schmitz, Pedro Ignácio, Rosa, André Osorio & Bitencourt, Ana Luisa Vietti. Arqueologia nos cerrados do Brasil Central. Serranópolis III. Pesquisas, Antropologia 60. São Leopoldo, Instituto Anchietano de Pesquisas, 2004, 288 páginas (a saír).
- Schmitz, Pedro Ignácio. O povoamento do planalto central do Brasil. 11.000 a 8.500 anos A.P. Anais do 2º workshop arqueológico do Xingó. Max, UFS, 2002, p. 27-45.
Nenhum comentário:
Postar um comentário