Novos
dados lançam dúvidas sobre o homem americano
O povoamento
do continente americano é um enigma a ser decifrado para
a compreensão da evolução de nossa espécie,
chamada pelos cientistas de Homo sapiens. Ao deixar a África,
onde surgiu aproximadamente entre 200 mil e 100 mil anos, o homem
primitivo deu início à sua dispersão territorial
e colonizou novos continentes, adaptando-se a novas regiões
de clima e recursos naturais variados. Num movimento cuja direção
levou ao estreito de Bering, a porta de entrada das Américas,
nossos ancestrais deixaram vestígios nos lugares por onde
passaram e fixaram residência. Esses locais, conhecidos como
sítios arqueológicos foram encontrados em maior número
na Europa, Ásia e Oceania do que na América do Norte,
Central e do Sul que também são mais recentes. Essa
lacuna na história do desenvolvimento humano há muito
tempo mobiliza arqueólogos, lingüistas, antropólogos
físicos e sociais, biólogos e geólogos, que
procuram conhecer a origem, as características e quando e
como chegou à América a nossa espécie.
"Hoje,
as perguntas que estão sendo feitas sobre o povoamento da
América são: de onde vieram os primeiros colonizadores?
Que rota seguiram? A migração foi contínua
ou interrompida por lapsos de tempo? Quando ocorreu essa migração,
ou quando ocorreram essas migrações?", explica
Francisco Salzano, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), empenhado em desvendar as origens do homem americano
por meio da análise genética de grupos indígenas.
Para ele, existe o consenso entre os cientistas de que não
existiram populações originadas no continente, pois
aqui ainda não foram encontrados vestígios muito antigos
de fósseis humanos. Além disso, a hipótese
mais aceita é a de que a rota de entrada no continente passou
pelo estreito de Bering. "Mesmo com relação a
este último ponto, no entanto, há vozes discordantes.
As discussões quanto à região original de migração
envolvem ou a Mongólia ou a Sibéria, numa ou mais
rotas de migração, que podem ter sido terrestres,
interiores, costeiras ou marítimas", diz Salzano.
Um
dos debates mais intensos sobre o surgimento do homem americano
diz respeito ao tempo de sua chegada ao continente. Até meados
do século passado, os achados arqueológicos que ofereciam
dados mais antigos sobre a presença humana nas Américas
derivavam de materiais encontrados no Novo México, EUA. Trata-se
da cultura Clóvis, assim batizada com o mesmo nome do sítio
arqueológico em que foram encontrados artefatos produzidos
por pessoas que habitaram a região entre 10.500 e 11.400
anos atrás. Esse grupo era formado por caçadores de
grandes animais, tais como mamutes e mastodontes, que eram abatidos
por pontas de pedra lascada bastante afiadas, cuja técnica
de produção permitia que fossem colocadas na ponta
de um cabo.
Ponta de flecha tipo Clóvis
Fonte: Reprodução do catálogo da Mostra
do Redescobrimento Brasil + 500
Esses
achados permitiram a construção do modelo teórico
chamado "Clóvis-Primeiro", segundo o qual uma única
leva de pessoas adentrou a América aproximadamente a 12 mil
anos. Esse período correspondia a uma era geológica,
o final do período Pleistoceno, em que, entre o Alasca e
o estreito de Bering, formou-se um corredor de terra chamado Beríngia,
graças ao rebaixamento do nível do mar, numa era glacial
em que a água era retida em grande volume na forma de gelo.
Além desse fato geológico, a teoria foi corroborada
por outras descobertas em sítios arqueológicos nos
Estados Unidos, onde os artefatos de pedra lascada encontrados eram
bastante semelhantes aos da cultura Clóvis. Desse modo, passou-se
a acreditar que dessa cultura descendiam os demais grupos humanos
espalhados pelo continente, idéia defendida ferrenhamente
pelos pesquisadores norte-americanos, que olham com ceticismo a
produção científica sul-americana.
Mas
a teoria de que a cultura Clóvis era a primeira e mais antiga
da América, aos poucos, foi perdendo espaço diante
das novas descobertas arqueológicas que atestaram uma presença
humana mais remota em algumas regiões fora da América
do Norte, tornando mais acirradas as discussões sobre a origem
do homem em nosso continente. No final dos anos 90, trabalhos publicados
por cientistas norte-americanos sobre escavações realizadas
na América do Sul indicavam datas de ocupação
de períodos contemporâneos aos de Clóvis.
No
sítio de Monte Verde explorado pelo arqueólogo Tom
Dillehay, ao sul do Chile, foram encontrados vestígios arqueológicos
que sugerem uma presença humana há 12.300 anos. Os
estudos da pesquisadora Anna Roosevelt sobre Pedra Pintada, sítio
localizado na cidade de Monte Alegre, Pará, indicam a ocupação
do homem na floresta amazônica por volta de 11.300 anos atrás.
Os resultados obtidos nesse local levaram a pesquisadora apresentar
um outro modelo teórico de explicação da ocupação
da América, o qual foi chamado de "Clóvis em
contexto". Segundo esse modelo, a cultura Clóvis não
era a mais antiga ocupação no continente da qual derivam
todas as demais populações americanas.
Achados
em outros sítios arqueológicos espalhados pela América
do Sul reforçam a teoria de uma ocupação pré-Clóvis
do continente, no final do período Pleistoceno, anterior
a 10 mil anos, e no início do Holoceno, nossa atual era geológica.
Em Taima-Taima, sítio venezuelano, há indícios
de presença humana que remontam a 15 mil anos. Na Argentina,
nos sítios de Piedra Museo e Los Toldos, existem vestígios
humanos de aproximadamente 13 mil anos. Os sítios de Tibitó,
Colômbia, e os de Quebrada Jaguay e Pachamachay, no Peru,
possuem datações antigas de até 11.800 anos.
No Brasil, em Lapa do Boquête, Vale do Peruaçu, e em
Lapa Vermelha e Santana do Riacho, Lagoa Santa, todos estes em Minas
Gerais, e no Boqueirão da Pedra Furada, São Raimundo
Nonato, Piauí, foram encontradas evidências remotas,
anteriores a 10 mil anos.
Atualmente,
reivindica-se ao sítio arqueológico do Boqueirão
da Pedra Furada, os vestígios mais antigos deixados pelo
homem nas Américas. Datações feitas a partir
de carvões originados de fogueiras e pedras lascadas indicam
uma ocupação humana que remonta a cerca de 60 mil
anos. Porém, entre os arqueólogos, é discutido
se realmente tais vestígios foram produzidos por homens ou
se são resultado de algum tipo de ação natural.
Para a arqueóloga Niéde Guidon, que escava a região
desde os anos 80, não há dúvidas de interpretação
a respeito da ação humana nesse contexto. "Colegas
americanos da Texas A & M University, EUA, analisaram as peças
líticas e, como nós, as consideram indubitavelmente
feitas pelo homem. Para rebater a idéia de que o carvão
podia vir de incêndios naturais, fizemos sondagens em todo
o vale da Pedra Furada e o carvão somente existe dentro do
sítio. Incêndios naturais deixam carvão para
todos os lados", explica a pesquisadora.
Para
Niéde Guidon, a partir dos vestígios do sítio
de Pedra Furada, considerando dados da paleoclimatologia, da paleoparasitologia
e da genética, seria possível propor uma teoria sobre
a ocupação da América por grupos humanos diferentes,
vindo de diferentes regiões, em diferentes épocas,
ao longo dos últimos 100 mil anos. Mas, como ressalta a pesquisadora,
sua proposta não é a de desvendar as origens do homem
americano, mas sim descrever a história do homem na região
do sudeste do Piauí.
"Todos
partem do pressuposto de que estamos estudando a origem do homem
americano. Nosso programa de pesquisa é outro. Iniciei as
pesquisas partindo da hipótese de que, tratando-se de uma
região de fronteira entre duas grandes formações
brasileiras, o escudo pré-cambriano da depressão periférica
do São Francisco e a bacia sedimentar Maranhão Piauí
do período devoniano-permiano, haveria uma profusão
de ecossistemas diferentes, o que aumentaria a quantidade e diversidade
dos produtos naturais disponíveis. Esse fato poderia ser
o gerador de condições favoráveis para o desenvolvimento
de culturas diferentes e, principalmente, de grandes culturas nesta
região. Estudamos também todo o processo de evolução
climática e da paisagem, desde a chegada do homem até
hoje. Essa hipótese se mostrou verdadeira e até hoje
estamos descobrindo novos sítios, figuras rupestres que foram
comparadas pelos técnicos da Unesco às pinturas das
grutas francesas, sendo classificadas como obras primas da humanidade.
A quantidade de sítios, de pinturas, gravuras, material lítico
e cerâmico demonstra uma presença antiga e contínua.
Portanto, se enganam aqueles que pensam que estamos pesquisando
para descobrir o mais velho ocupante da América. Se os sítios
mais antigos tivessem 9.000 anos continuaríamos com o mesmo
programa", diz Guidon.
Achados
arqueológicos pré-Clóvis, ou seja, mais antigos
que 11.400 anos, também têm ajudado a embaralhar ainda
mais outras duas peças do quebra-cabeça sobre a colonização
primitiva da América que são: a origem do homem americano
e o número de levas migratórias que o trouxeram para
o continente. Na década de 80, a explicação
mais aceita era fornecida pelo Modelo das Três Migrações,
uma combinação de análises dentária,
lingüística e de genética clássica. Segundo
esse modelo, três populações originárias
da Sibéria e do nordeste-asiático - ameríndios,
na-denes e esquimós - adentraram respectivamente o território
americano há 11 mil, 9 mil e 4 mil anos.
Porém,
novos estudos em genética baseados na análise do DNA
mitocondrial (mtDNA) e do cromossomo Y de populações
indígenas americanas fornecem modelos alternativos sobre
os grupos fundadores de novas culturas na América. Os pesquisadores
Francisco Salzano (UFRGS) e Sandro Bonatto (PUCRS), baseados em
resultados com mtDNA, sugerem uma entrada única no continente,
por volta de 16 mil a 20 mil anos atrás. Mas Salzano explica
que tais projeções sobre o tempo de presença
do homem na América variam conforme a base de referência
utilizada para estudos nesse sentido. Citando o exemplo da genética,
o pesquisador diz que algumas pesquisas baseadas em análises
do cromossomo Y, por exemplo, propõem números diferentes
de migrações colonizadoras, uma ou mais, que ocorreram
em épocas distintas.
Pesquisas
em antropologia física, baseadas no estudo da morfologia
craniana, também apresentam modelos distintos de ocupação
da América, sugerindo a existência de quatro ondas
migratórias ocorridas em períodos diferentes. Em artigo
publicado na revista brasileira Scientific American, em agosto
deste ano, os pesquisadores Walter Neves e Mark Hubbe, ambos da
USP, defendem a idéia de que uma população
distinta dos atuais índios americanos adentrou o continente
através do estreito de Bering aproximadamente a 15 mil anos.
Essa hipótese faz parte da teoria denominada "Modelo
dos Dois Componentes Biológicos Principais", segundo
a qual houve uma migração não mongolóide,
que antecedeu a chegada dos ameríndios, na-denes e esquimós
ao continente.
Essa
teoria é sustentada pelo antropólogo físico
Walter Neves desde meados dos anos oitenta, época em que
ele analisou uma série de crânios encontrados no sítio
Lapa Vermelha IV, região de Lagoa Santa, Minas Gerais, escavado
por franceses e brasileiros sob a liderança da arqueóloga
Annete Laming Emperaire, entre os anos de 1974 e 1976. A morfologia
desses crânios apresenta traços característicos
aos dos aborígines africanos e australianos, que são
distintos dos traços característicos de povos com
origem asiática, tais como chineses, japoneses e atuais indígenas
americanos.
Annete escava local onde foi encontrada a mandíbula de Luzia
Foto cedida por André Prous
A idéia
de que o território americano foi ocupado por populações
de componentes biológicos distintos ganhou visibilidade com
a publicação, em 1998, de um estudo feito por Neves
a partir de um esqueleto encontrado na Lapa Vermelha, considerado
um dos mais antigos encontrados na América. Com a idade entre
11 mil e 11.500 anos atrás, esse esqueleto pertencia a uma
mulher jovem batizada pelos arqueólogos de Luzia. O estado
de conservação de seu crânio permitiu a realização
de uma reconstituição facial, cuja aparência
revela traços semelhantes aos de africanos e australianos.
A busca continua
A origem primitiva do homem americano permanece um mistério para a ciência. Os pesquisadores que procuram desvendá-la, dispõem de escassas evidências e utilizam diferentes bases de referência metodológica (lingüística, arqueológica, antropológica, genética etc), que são difíceis de serem encaixadas num mesmo modelo teórico. De certa forma, as discussões giram em torno de quem possui os dados mais precisos e mais antigos sobre a presença humana em nosso continente. Além disso, os embates científicos parecem estar polarizados pelas velhas teorias de colonização e os novos vestígios arqueológicos encontrados na América do Sul.
Para
Niéde Guidon, as teorias sobre a ocupação da
América dos anos 50 eram baseadas na falta de dados. "Os
dados foram surgindo, mas muitos ficaram aferrados a uma teoria
sem bases. Os conhecimentos sobre a pré-história da
Europa, da África, mudaram e muito. A cada ano temos novos
recuos para o aparecimento do gênero Homo, para as
relações genéticas entre Homo e os outros
grandes primatas africanos. Somente a teoria americana sobre o povoamento
da América não pode ser tocada. Em alguns artigos
recentes, a submissão é tal que somente o que é
feito pelos americanos pode ser considerado", comenta a arqueóloga.
O arqueólogo
André Prous (UFMG), que participou da missão franco-brasileira
para a escavação do sítio de Lapa Vermelha
IV, onde foi encontrada a Luzia, acrescenta que a determinação
de um período para a ocupação do homem na América
depende da descoberta de sítios arqueológicos devidamente
escavados e interpretados. Diz ele, "o dia em que tivermos
sítios, se é que eles irão aparecer, mais antigos
e em boas condições, já com vestígios
inquestionáveis, com estratigrafias claras e datações
precisas, teremos dados mais seguros sobre uma presença bastante
primitiva do homem em determinada região. Para isso, é
preciso multiplicar os números de pesquisas, procurar supostos
sítios pleistocênicos com vestígios preservados
etc. Teríamos que ter uma multiplicidade de estudos arqueológicos
a esse respeito, pois as pesquisas acadêmicas sobre o tema
são raras. Além disso, no final, devemos contar com
boa dose de sorte para achar esses locais".
FONTE: Com Ciência Arqueologia e Sítios Arqueológicos
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