Eram os deuses geométricos?
Novos sítios arqueológicos na Amazônia poderão revelar surpresas sobre o passado dos habitantes da América do Sul antes da chegada dos colonizadores. Os cientistas suspeitam que os geoglifos - figuras geométricas esculpidas na terra - descobertos no Acre e em Rondônia podem ter inspiração divina
Por Fabíola Musarra
Novos sítios arqueológicos na Amazônia poderão revelar surpresas sobre o passado dos habitantes da América do Sul antes da chegada dos colonizadores. Os cientistas suspeitam que os geoglifos - figuras geométricas esculpidas na terra - descobertos no Acre e em Rondônia podem ter inspiração divina
Por Fabíola Musarra
O desmatamento no sudeste do Acre
já revelou 270 geoglifos indígenas. O tamanho dos aterros sugere que as
antigas sociedades amazônicas eram mais numerosas do que se supunha.
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Equipes multidisciplinares do Brasil, dos Estados Unidos, da
Finlândia e do Reino Unido estão pesquisando na Amazônia o passado dos
povos que habitaram a região muito antes da formação da maior floresta
do planeta. Baseados em imagens aéreas, os cientistas estudam centenas
de geoglifos - imensas figuras circulares, quadradas, retangulares,
octogonais ou com outras formas geométricas desenhadas no solo do Acre,
de Rondônia, do sul do Amazonas e do norte da Bolívia. A análise dessas
colossais estruturas de terra sugere que uma civilização maior e mais
desenvolvida do que se supunha já vivia na região antes do Descobrimento
do Brasil.
A versão histórica predominante é de que a Amazônia era povoada
por pequenas tribos de índios, que viviam em terra firme, em locais
distantes dos rios. No entanto, as fotografias aéreas e as imagens de
satélite desmistificam essa teoria, pois mostram que os geoglifos foram
erguidos tanto em solo firme quanto em terrenos próximos aos rios. A
descoberta também coloca em xeque a teoria de que os povos amazônicos
viviam em sociedades simples, que nada produziam de perene além de
cerâmicas.
O questionamento sobre as "limitações materiais" das culturas
amazônicas começou na década de 1990, quando o geógrafo e paleontólogo
Alceu Ranzi, ao sobrevoar a região, viu várias dessas estruturas. Ao
constatar que estava diante de um fenômeno regional e as vastas
construções eram artificiais, batizou-as com o nome de geoglifos, cujo
significado quer dizer desenho na terra. Hoje, sabe-se que os geoglifos
amazônicos foram erguidos a partir da escavação de um fosso. A terra
escavada ia sendo colocada cuidadosamente na parte externa e formava uma
mureta. Desse modo, criava-se um desenho geométrico, em alto e baixo
relevo.
Trata-se de uma construção engenhosa. Os aterros geométricos
desenhados na terra têm de 113 a 200 metros de largura e de 30
centímetros a 5 metros de profundidade. Em 1977, foram vistos pela
primeira vez no Acre, quando o arqueólogo Ondemar Dias fez um
levantamento deles no âmbito do Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas na Bacia Amazônica, do qual participaram Ranzi e o
arqueólogo Franklin Levy.
Na ocasião, a equipe identificou 8 geoglifos circulares, mas a
pesquisa não foi divulgada. Entre 1986 e 1999, Ranzi identificou 24
novas estruturas. A descoberta só foi possível devido ao desmatamento da
região nos últimos 40 anos. Até a década de 1970 os grandes projetos
agropecuários não haviam invadido a Amazônia Ocidental, a floresta
estava intacta e os geoglifos permaneciam escondidos pela copa de
árvores, o que impossibilitava a observação.
Em 2000, as pesquisas se intensificaram, assim como os sobrevoos
para a obtenção de fotos aéreas visando ao registro. Imagens de satélite
e do Google Earth permitiram a localização de novos geoglifos sem a
necessidade de usar aviões. Hoje, graças às novas tecnologias, já foram
identificadas 270 construções. Contudo, os pesquisadores afirmam que, em
razão da dificuldade de se observar a Amazônia via satélite, os
geoglifos encontrados podem ser apenas 10% do total existente na região.
Por Fabíola Musarra
Rituais religiosos
Os pesquisadores ainda não sabem qual a finalidade dessas imensas
obras dos antigos povos amazônicos. Alguns acreditam que tinham um
significado simbólico ou religioso. Outros acham que a remoção da
vegetação que realizaram pode ter tido algum tipo de função militar. De
qualquer modo, descobrir quais foram as culturas amazônicas responsáveis
pela construção dos geoglifos faz parte dos objetivos dos projetos
multidisciplinares em andamento.
Outra incógnita é a grandiosidade das estruturas do Acre. Para
Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida (EUA), os geoglifos
tinham finalidades cerimoniais. Uma das razões de sua monumentalidade
seria a comunicação com seres superiores. "Não temos inferências para
afirmar que os geoglifos estavam alinhados ou direcionados para algum
corpo celeste", diz Denise Pahl Schaan, pesquisadora do CNPq e
coordenadora do grupo de pesquisa Geoglifos da Amazônia Ocidental.
"As imensas valetas serviam para circundar um espaço aberto
interno que era usado para encontros, rituais religiosos e moradia em
alguns casos", prossegue Denise. Segundo ela, os construtores dos
geoglifos constituíram as primeiras sociedades sedentárias do Acre. Eles
habitaram a região há mais de 2.000 anos e, possivelmente, foram povos
agricultores.
Os maiores inimigos dos geoglifos
são as plantações de cana, o pisoteio do gado, as máquinas agrícolas, os
assentamentos de terra e as estradas.
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Co-organizadora do livro Geoglifos - Paisagens da Amazônia
Ocidental, Denise lembra que, em 1887, o então governador de Manaus (AM)
ordenou ao coronel Antonio Labre subir o Rio Madeira e encontrar uma
rota por terra em meio aos entrepostos de produção de borracha no Rio
Madre de Diós e algum ponto navegável do Rio Acre. Ao seguir por terra
até o Rio Acre, Labre passou por várias vilas da etnia araona (da
família linguística tacana).
Na fronteira do Estado, o militar encontrou uma vila povoada por
umas 200 pessoas e ficou impressionado com a sua organização social. Ali
aprendeu que aqueles povos adoravam deuses de formato geométrico,
esculpidos em madeira. As efígies eram mantidas em templos no meio da
floresta. O pai dos deuses tinha forma elíptica e chamava-se Epymará.
"Labre não descreveu os templos, mas tudo nos leva a cogitar sobre as
possíveis funções religiosas dos geoglifos, encontrados não muito longe
das antigas aldeias araonas", comenta Denise.
Savana
A ocorrência de geoglifos no Acre também é um forte indicativo de
ausência da floresta. Posteriormente, a mata ocupou e recobriu a
paisagem cultural dos povos construtores dos aterros. Denise diz que é
provável que na região existissem áreas abertas, de savana, mas os
cientistas ainda não têm certeza. Por isso, coletaram amostras para
realizar análises que deverão esclarecer o assunto. O material está
sendo analisado no Reino Unido, na Universidade de Exeter.
Para realizar as pesquisas, os cientistas recorrem ao
sensoriamento remoto, técnica que utiliza imagens de satélites,
fotografias aéreas e sobrevoos com pequenos aviões, além de um georradar
da Universidade Federal do Pará. "A disponibilidade de imagens de
satélite tem sido fundamental para os nossos estudos, assim como
softwares para cruzamento de dados culturais e geográficos, como o
ArcGis. Além das imagens gratuitas do Google Earth, o governo do Acre
nos fornece imagens do satélite Formosat", afirma Denise.
Os cientistas também visitam os sítios identificados para tirar
medidas, fazer coletas e registros. O estudo contribui para novas
interpretações sobre como os antigos amazônidas viviam e como era a sua
organização sociopolítica. "Esse conhecimento é fundamental para
subsidiar programas de preservação do patrimônio arqueológico da
região", explica Denise.
Apesar de sua relevância, os geoglifos estão ameaçados. Seus
maiores inimigos são as plantações de cana, o pisoteio do gado, as
máquinas agrícolas, os assentamentos de terra e as estradas, que já
danificaram muitos deles.
Texto: fabiola@planetanaweb.com.br
FONTE: Revista Planeta
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