Heitor e Silvia Reali, de Calçoene, Amapá
Nas proximidades da cidade litorânea de Calçoene, 390
quilômetros ao norte de Macapá, encontra-se um dos monumentos mais
importantes da arqueologia do País. Conjunto de pedras maciças
organizado por mãos humanas, às margens do igarapé Rego Grande, essa
descoberta vem atraindo a atenção de cientistas de todo o mundo.
Ninguém ainda tem certeza sobre como ele foi feito, nem sobre quais eram os seus propósitos. O local acaba de ser batizado oficialmente como Parque Arqueológico do Solstício, o primeiro do gênero no Brasil. Guardando as devidas proporções de tempo, história e dimensões, o conjunto se assemelha a Stonehenge, o famoso círculo de pedras pré-histórico da Inglaterra. Por isso, ganhou o apelido de Stonehenge amazônica.
Ninguém ainda tem certeza sobre como ele foi feito, nem sobre quais eram os seus propósitos. O local acaba de ser batizado oficialmente como Parque Arqueológico do Solstício, o primeiro do gênero no Brasil. Guardando as devidas proporções de tempo, história e dimensões, o conjunto se assemelha a Stonehenge, o famoso círculo de pedras pré-histórico da Inglaterra. Por isso, ganhou o apelido de Stonehenge amazônica.
O pesquisador Felipe, do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa), passeia por entre as pedras do círculo de Calçoene. Muitos cientistas acreditam que o complexo megalítico é na verdade um grande observatório astronômico construído há muitos séculos por nossos índios. |
Para a comunidade científica brasileira, a certidão de
nascimento do parque não é nova. Estudiosos sabiam da existência de
vários conjuntos de pedras erguidos por humanos no Amapá há muito tempo,
mas eles nunca tinham sido realmente estudados. O interesse atual pela
descoberta do sítio arqueológico de Rego Grande se justifica por conta
das suas dimensões muito maiores, quando comparadas aos outros conjuntos
encontrados anteriormente.
A expansão da pecuária na Floresta Amazônica foi o que provocou o descobrimento. Contratado em 2005 para pôr fogo no mato a fim de ampliar a área de pasto destinada à criação de búfalos, Garrafinha, como gosta de ser chamado Lailson da Silva, deu de cara com essas enormes pedras. Avisou o fazendeiro, e este, diferentemente da maioria de seus colegas, que preferem ficar na moita ao descobrir vestígios arqueológicos, com medo de desapropriações, procurou logo o Estado para vender suas terras, pois tinha certeza do seu valor histórico.
Logo depois da sua descoberta, o lugar passou a ser visto como mal-assombrado pelos moradores das proximidades. Visões, vozes, luzes e casos ocorridos no interior do círculo de pedra ainda são narrados por eles. Uma boa história é contada por Garrafinha: “Uma vez, um cara tirou um vaso cerâmico de lá e o levou para casa. A partir daí, todas as noites ele acordava tomando porrada não sei de quem. Só depois de ele apanhar muito é que alguém juntou o fato com o roubo da cerâmica. Então, ele devolveu o pote ao local de onde tinha sido retirado. Depois disso, nunca mais apanhou da assombração.”
A expansão da pecuária na Floresta Amazônica foi o que provocou o descobrimento. Contratado em 2005 para pôr fogo no mato a fim de ampliar a área de pasto destinada à criação de búfalos, Garrafinha, como gosta de ser chamado Lailson da Silva, deu de cara com essas enormes pedras. Avisou o fazendeiro, e este, diferentemente da maioria de seus colegas, que preferem ficar na moita ao descobrir vestígios arqueológicos, com medo de desapropriações, procurou logo o Estado para vender suas terras, pois tinha certeza do seu valor histórico.
Logo depois da sua descoberta, o lugar passou a ser visto como mal-assombrado pelos moradores das proximidades. Visões, vozes, luzes e casos ocorridos no interior do círculo de pedra ainda são narrados por eles. Uma boa história é contada por Garrafinha: “Uma vez, um cara tirou um vaso cerâmico de lá e o levou para casa. A partir daí, todas as noites ele acordava tomando porrada não sei de quem. Só depois de ele apanhar muito é que alguém juntou o fato com o roubo da cerâmica. Então, ele devolveu o pote ao local de onde tinha sido retirado. Depois disso, nunca mais apanhou da assombração.”
No alto, um portão de madeira guarda um imenso descampado onde está a casa do guarda-parque. Acima, o pesquisador Evandro em frente à casa do guarda-parque e quartel-general dos pesquisadores do Iepa. |
Enigmas visuais
Quem chega ao sítio de Rego Grande depois de um trecho de terra de 18 quilômetros, a partir de Calçoene, percebe que o lugar realmente tem pegada forte. O caminho é cercado por casas esparsas e também por muito pasto e palmeiras que despontam na paisagem. Um portão de madeira guarda um imenso descampado onde está a casa do guarda-parque. Logo a seguir, causa grande impacto a visão do círculo de pedras que domina todo o alto de uma colina. Principalmente se a visita for ao entardecer, quando as sombras se alongam e crescem. Esse é um território de enigmas visuais.
Desde 2006, o círculo de 30 metros de diâmetro com 147 blocos de granito, alguns com 4 metros de altura e peso de até 4 toneladas, vem sendo estudado pela equipe de arqueólogos do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa), liderada pelos pesquisadores Mariana Petry Cabral e João Saldanha.
Mariana está há sete anos no Amapá, mas ainda não perdeu seu sotaque gaúcho. Ela enfatiza que é provável “que o lugar tenha sido um misto de calendário ou observatório astronômico e de centro ritualístico, mas que até o momento isso permanece apenas no terreno da hipótese”.
Para o meteorologista José Ávila, também pesquisador do sítio Rego Grande, não há dúvida de que o conjunto é um gigantesco calendário e um dos mais importantes sítios arqueológicos do Brasil. Desde o final de 2006, esse discurso repercute mais forte quando se considera a posição do maior bloco de pedra ali existente.
Há quase quatro anos, a equipe de pesquisadores comprovou o que já se esperava. Aquele monólito projeta uma sombra no chão, mas ela some no dia do solstício de inverno, 21 ou 22 de dezembro. Nesse dia, quando alcança sua posição mais alta no céu (o chamado zênite), o Sol aparece exatamente acima da pedra, de forma que ela não lança sombra alguma no chão.
Segundo Mariana, a inclinação desse bloco não é um acaso, resultante de passagem dos anos, dos ventos e das queimadas feitas no local. Ela é intencional. “Geólogos que acompanharam os estudos escavaram o terreno e verificaram que havia estruturas de sustentação, calçadas por outras pedras, bem calculadas para os blocos principais, e alinhadas ao solstício e talvez a outros astros.”
Quem chega ao sítio de Rego Grande depois de um trecho de terra de 18 quilômetros, a partir de Calçoene, percebe que o lugar realmente tem pegada forte. O caminho é cercado por casas esparsas e também por muito pasto e palmeiras que despontam na paisagem. Um portão de madeira guarda um imenso descampado onde está a casa do guarda-parque. Logo a seguir, causa grande impacto a visão do círculo de pedras que domina todo o alto de uma colina. Principalmente se a visita for ao entardecer, quando as sombras se alongam e crescem. Esse é um território de enigmas visuais.
Desde 2006, o círculo de 30 metros de diâmetro com 147 blocos de granito, alguns com 4 metros de altura e peso de até 4 toneladas, vem sendo estudado pela equipe de arqueólogos do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa), liderada pelos pesquisadores Mariana Petry Cabral e João Saldanha.
Mariana está há sete anos no Amapá, mas ainda não perdeu seu sotaque gaúcho. Ela enfatiza que é provável “que o lugar tenha sido um misto de calendário ou observatório astronômico e de centro ritualístico, mas que até o momento isso permanece apenas no terreno da hipótese”.
Para o meteorologista José Ávila, também pesquisador do sítio Rego Grande, não há dúvida de que o conjunto é um gigantesco calendário e um dos mais importantes sítios arqueológicos do Brasil. Desde o final de 2006, esse discurso repercute mais forte quando se considera a posição do maior bloco de pedra ali existente.
Há quase quatro anos, a equipe de pesquisadores comprovou o que já se esperava. Aquele monólito projeta uma sombra no chão, mas ela some no dia do solstício de inverno, 21 ou 22 de dezembro. Nesse dia, quando alcança sua posição mais alta no céu (o chamado zênite), o Sol aparece exatamente acima da pedra, de forma que ela não lança sombra alguma no chão.
Segundo Mariana, a inclinação desse bloco não é um acaso, resultante de passagem dos anos, dos ventos e das queimadas feitas no local. Ela é intencional. “Geólogos que acompanharam os estudos escavaram o terreno e verificaram que havia estruturas de sustentação, calçadas por outras pedras, bem calculadas para os blocos principais, e alinhadas ao solstício e talvez a outros astros.”
A arqueóloga Mariana Petry Cabral. Ela está há sete anos no Amapá e enfatiza que é provável “que o lugar tenha sido um misto de calendário ou observatório astronômico e de centro ritualístico, mas que até o momento permanece apenas no terreno da hipótese”. As cerâmicas indígenas estudadas por Mariana. |
“Os blocos vieram em bruto de outro lugar, mas foram talhados ali. A
cinco quilômetros da área, os pesquisadores encontraram cicatrizes em
uma pedreira: com certeza, foi dali que retiraram a maioria das pedras”,
prossegue Mariana.
Embora sem possuir nenhum dos sofisticados instrumentos astronômicos atuais, o povo que há cerca de mil anos vivia na região de Calçoene estava muito à frente do seu tempo em termos de conhecimentos de astronomia. Ele estudava o céu sempre que surgisse a necessidade de se respeitar um ciclo temporal, como provavelmente detectar a época certa para o plantio e a colheita, festas comemorativas, etc.
Algumas descobertas já são bem concretas: “Está claro que o local era um cemitério indígena, além de lugar para a prática de cerimônias”, relata Mariana. Ela afirma ainda que durante a fase de escavação “foram achados no interior do círculo dois poços funerários, de dois e três metros de profundidade, tampados por uma pesada pedra. Dentro e fora do círculo estavam enterrados muitos potes, vasos e urnas funerárias”.
Embora sem possuir nenhum dos sofisticados instrumentos astronômicos atuais, o povo que há cerca de mil anos vivia na região de Calçoene estava muito à frente do seu tempo em termos de conhecimentos de astronomia. Ele estudava o céu sempre que surgisse a necessidade de se respeitar um ciclo temporal, como provavelmente detectar a época certa para o plantio e a colheita, festas comemorativas, etc.
Algumas descobertas já são bem concretas: “Está claro que o local era um cemitério indígena, além de lugar para a prática de cerimônias”, relata Mariana. Ela afirma ainda que durante a fase de escavação “foram achados no interior do círculo dois poços funerários, de dois e três metros de profundidade, tampados por uma pesada pedra. Dentro e fora do círculo estavam enterrados muitos potes, vasos e urnas funerárias”.
O espaço interno do círculo não é grande. Nele cabem, no máximo, 300 pessoas. Assim, é possível estimar que em determinados dias do ano, quando os frequentadores chegavam para suas festas e seus rituais, o local poderia abrigar pelo menos o dobro de pessoas, dentro e fora do círculo. |
Laços fortes com ancestrais
Como curiosidade, vale dizer que as cerâmicas encontradas são cheias de significado. Por que as peças mais próximas ao centro são decoradas com desenhos de animais aquáticos (peixes e sapos, por exemplo) e as mais afastadas, de animais terrestres, como macacos e aves? Mariana explica que ainda não se pode caracterizar qual grupo indígena construiu o círculo. Sabe-se apenas que tinham uma relação muito forte com os ancestrais. “Talvez esses desenhos indicassem a classe social do morto”, avalia.
A cerâmica é um ponto de inflexão do processo civilizador, tão importante quanto foi a pedra lascada. Por meio dela, os arqueólogos chegam a mais algumas conclusões. As peças desenterradas dali são da fase Aristé (ou Cunani). Esse tipo de utensílio, com pinturas em quatro cores e urnas antropomorfas, pertence a uma tradição ceramista característica dos povos que habitaram a região do Amapá até a Guiana Francesa, há cerca de mil anos.
A construção é, portanto, algo nosso, o que contraria os estudos feitos nos anos 1950 pelos arqueólogos norte-americanos Betty Meggers e Clifford Evans, que já tinham conhecimento desses círculos de pedra. Para eles, as chamadas sociedades complexas da Amazônia eram oriundas de imigrações de índios culturalmente mais avançados, como os dos Andes. Contudo, perguntas intrigantes permanecem no ar. Por exemplo: onde moravam os construtores e os frequentadores do círculo de pedra, se não existem vestígios de aldeias em suas proximidades? De onde os indígenas tiravam comida para nutrir as pessoas que trabalharam na construção desse e dos demais círculos de pedra? E como isso era feito durante os dias dedicados aos rituais sagrados? Viriam eles de muito longe?
O sítio de Rego Grande foi um empreendimento do qual toda a comunidade participou. Devem ter sido necessárias muitos dias e algumas centenas de homens para carregar as pedras até aquele lugar, entalhar a superfície dura, dar-lhe a forma correta, ajustar os encaixes e pôr cada pedra em seu lugar. O espaço interno do círculo não é grande. Nele cabem, no máximo, 300 pessoas. Assim, é possível estimar que em certos dias do ano, quando os frequentadores chegavam para suas festas e rituais, o local poderia abrigar pelo menos o dobro de pessoas, dentro e fora do círculo.
Todas as perguntas mencionadas acima fazem sentido, pois não existem no Amapá as chamadas manchas de terra preta (pequenas faixas de solo fértil em meio à terra pobre e ácida da floresta) comuns em outras partes da Amazônia, que acompanham o curso de rios e igarapés e que em geral resultam do aumento da ocupação humana no local. Esse solo mais fértil se forma a partir do acúmulo de matéria orgânica produzida pelos assentamentos humanos mais densos em solo amazônico.
Alguns estudiosos afirmam que o adensamento populacional não se dá exclusivamente por conta da produção agrícola, mas também pela maior abundância da caça, pesca e coleta de caranguejos. Outros refutam isso, afirmando que tal ocorre apenas no caso de comunidades muito reduzidas, o que não seria o caso do sítio de Calçoene.
Não se sabe exatamente o que se fazia no círculo de pedras de Rego Grande. Nem se sabe se ele era visitado pela totalidade dos integrantes do grupo indígena que o construiu ou somente por alguns indivíduos escolhidos. Tampouco se sabe qual culto ali era praticado ou se ele era simplesmente um observatório astronômico. A única coisa que se sabe com quase certeza é que, para os indígenas que o edificaram, o círculo de pedras era um lugar sagrado.
Como curiosidade, vale dizer que as cerâmicas encontradas são cheias de significado. Por que as peças mais próximas ao centro são decoradas com desenhos de animais aquáticos (peixes e sapos, por exemplo) e as mais afastadas, de animais terrestres, como macacos e aves? Mariana explica que ainda não se pode caracterizar qual grupo indígena construiu o círculo. Sabe-se apenas que tinham uma relação muito forte com os ancestrais. “Talvez esses desenhos indicassem a classe social do morto”, avalia.
A cerâmica é um ponto de inflexão do processo civilizador, tão importante quanto foi a pedra lascada. Por meio dela, os arqueólogos chegam a mais algumas conclusões. As peças desenterradas dali são da fase Aristé (ou Cunani). Esse tipo de utensílio, com pinturas em quatro cores e urnas antropomorfas, pertence a uma tradição ceramista característica dos povos que habitaram a região do Amapá até a Guiana Francesa, há cerca de mil anos.
A construção é, portanto, algo nosso, o que contraria os estudos feitos nos anos 1950 pelos arqueólogos norte-americanos Betty Meggers e Clifford Evans, que já tinham conhecimento desses círculos de pedra. Para eles, as chamadas sociedades complexas da Amazônia eram oriundas de imigrações de índios culturalmente mais avançados, como os dos Andes. Contudo, perguntas intrigantes permanecem no ar. Por exemplo: onde moravam os construtores e os frequentadores do círculo de pedra, se não existem vestígios de aldeias em suas proximidades? De onde os indígenas tiravam comida para nutrir as pessoas que trabalharam na construção desse e dos demais círculos de pedra? E como isso era feito durante os dias dedicados aos rituais sagrados? Viriam eles de muito longe?
O sítio de Rego Grande foi um empreendimento do qual toda a comunidade participou. Devem ter sido necessárias muitos dias e algumas centenas de homens para carregar as pedras até aquele lugar, entalhar a superfície dura, dar-lhe a forma correta, ajustar os encaixes e pôr cada pedra em seu lugar. O espaço interno do círculo não é grande. Nele cabem, no máximo, 300 pessoas. Assim, é possível estimar que em certos dias do ano, quando os frequentadores chegavam para suas festas e rituais, o local poderia abrigar pelo menos o dobro de pessoas, dentro e fora do círculo.
Todas as perguntas mencionadas acima fazem sentido, pois não existem no Amapá as chamadas manchas de terra preta (pequenas faixas de solo fértil em meio à terra pobre e ácida da floresta) comuns em outras partes da Amazônia, que acompanham o curso de rios e igarapés e que em geral resultam do aumento da ocupação humana no local. Esse solo mais fértil se forma a partir do acúmulo de matéria orgânica produzida pelos assentamentos humanos mais densos em solo amazônico.
Alguns estudiosos afirmam que o adensamento populacional não se dá exclusivamente por conta da produção agrícola, mas também pela maior abundância da caça, pesca e coleta de caranguejos. Outros refutam isso, afirmando que tal ocorre apenas no caso de comunidades muito reduzidas, o que não seria o caso do sítio de Calçoene.
Não se sabe exatamente o que se fazia no círculo de pedras de Rego Grande. Nem se sabe se ele era visitado pela totalidade dos integrantes do grupo indígena que o construiu ou somente por alguns indivíduos escolhidos. Tampouco se sabe qual culto ali era praticado ou se ele era simplesmente um observatório astronômico. A única coisa que se sabe com quase certeza é que, para os indígenas que o edificaram, o círculo de pedras era um lugar sagrado.
FONTE: Revista Planeta
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